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Leonardo Sakamoto

Black Friday: Você tem aquela sensação vazia após uma compra inútil?

Leonardo Sakamoto

24/11/2014 11h12

Tento entender quem tem orgasmo ao comprar algo sem motivo.

Quer dizer, até entendo, antropologicamente falando. Pois comprei, há tempos, um ornitorrinco de pelúcia – o que me trouxe grande alegria.

No final das contas, a razão é a mesma de uma ave migratória europeia que vai para o Sul, no inverno, ou os fantasmas atacarem incessantemente o velho e bom Pac-Man. Ou seja, foram programados para isso.

Sei que há um milhão de  justificativas que podem ser dadas para tal ato: como a ardente materialização do desejo, passando pela projeção no objeto de uma série de sentimentos que você não terá tempo para experimentar por vivência própria (ou alguém aqui acha que é mais livre ou tem mais estilo por ingerir xarope doce preto com água gaseificada?) até a simples possibilidade de deixar claro quem está acima no estrato social via símbolos de status e poder.

(Nossa que coisa mala que acabei de escrever… Foi mal.)

Gosto da Black Friday, uma sexta-feira de grandes descontos – ideia que nasceu nos Estados Unidos para ocorrer depois do Dia de Ação de Graças e foi importada, para cá, por razões óbvias. Porque posso atualizar e retomar esse debate do qual gosto muito.

Alguns sites mais-que-honestos de compras já estão se preparando para subir o preço em 80% e, assim que virar a meia-noite, dar um incrível desconto de 75% (para fugir de ser enganado, recomendo um serviço que o UOL vai prestar, clicando aqui). Em outros, realmente o bicho do desconto vai pegar. No Brasil e nos EUA, a rebordosa está programada para este 28 de novembro.

Comprar é importante, gira a economia, gera empregos, realiza desejos, supre necessidades, compensa frustrações, controla o povo.

Não raro, a possibilidade de que a aquisição de um bem esteja no horizonte de uma pessoa dá a ela um sentido para a sua existência. Bizarro, mas é a vida.

Isso traz ansiedade e esperança para "hordas de bárbaros", que aprenderam a entender esses produtos como passaportes para saírem do ostracismo social.

Por tudo isso, nesta sexta, um pedido: não compre com o fígado. Ao acordar de manhã, cheque a fatura do seu cartão de crédito, os extratos bancários e os empréstimos – dos CDCs, passando pelas consignados até aquela grana que você tomou do amigo e nunca devolveu.

E reflita se o seu emprego está minimamente garantido pelo próximo ano antes de cair na esbórnia e comprar aquele descascador eletrônico de ovo cozido que você nunca vai usar, mas que o cara da TV disse que, sem ele, você é um pária.

Lembre-se: não é a procura que gera oferta. Mas a publicidade ostensiva sobre a oferta que cria a procura.

Como já disse aqui, não estou peidando regras ao vento, achando que sou leve feito um elfo.

Tenho meus desejos de consumo. Mas se está com aquele vazio difícil de preencher ou ficando "transparente" para seus amigos e colegas (lembra daquela comercial sem noção de uma marca de automóveis?), acha que a solução é realmente adquirir um produto e, através dele, o pacote simbólico de cura e inserção que traz consigo?

Acredita que precisa dar um presente para alguém a fim de mostrar que o/a ama?

Aliás, você se lembra como escrever cartas de amor com as próprias mãos, demonstrando o medo e a ansiedade nas letras enfileiradas?

Não precisamos ser aquilo que compramos. Ou, melhor, você não precisa comprar para ser alguém, como já disse aqui uma série de vezes.

Esses objetos de desejo serão realmente úteis para você? Ou só está procurando um estilo de vida do que gostaria de ser, mas não pode porque não tem dinheiro ou tempo para isso?

Presenteamos nossos filhos para demonstrar carinho em nossa ausência achando que isso resolve. Mas, desculpe, isso não resolve.

Aliás, "o que deveríamos ser" ou o que "deveríamos viver" normalmente não é resultado de uma auto-reflexão, mas de alguém martelando algo em nossa cabeça, dia após dia, em comerciais, anúncios, novelas e filmes.

Quanto tempo depois de uma compra impulsiva você percebe que aquilo não lhe trouxe felicidade? E a culpa te consumiu por dentro (afinal, somos um país cristão ou não somos?) E o horror: o vazio da falta de significado que aquilo tudo lhe traz dá uma paúra que antiácido nenhum resolve. Nem aqueles mais perfeitos vendidos na TV.

A "classe baixa com poder de compra mas ainda fora de patamares mínimos de dignidade, pois não tem acesso a serviços públicos de qualidade", conhecida como "nova classe média", está alcançando a inclusão social através do consumo. A pessoa deixa de ser vista como uma ignorante completa, uma estrangeira, porque tem um telefone com tela grande. Sendo que seria melhor que sua inclusão ocorresse també via a garantia de serviços de educação, saúde, cultura e lazer de qualidade e as consequências positivas que isso traz.

Que podem – ou não – incluir um smartphone. Mas quem escolheria seria a própria pessoa, não o mercado em nome dela.

Repito o que já escrevi aqui sem receio de me tornar redundante: muitos de nós ficam tanto tempo trabalhando que tornam-se compradores compulsivos de símbolos daquilo que não conseguiremos obter por vivência direta. Em promoções, como esta, em que a porteira está aberta e o convite está feito, nem se fala.

Através desses objetos, enlatamos a felicidade – pronta para consumo, mas que dura pouco. Porque, como os produtos que a representam, possui sua obsolescência programada a fim de garantir, daqui a pouco, mais dinheiro a alguém.

As próprias campanhas contra o consumismo desenfreado e pela proteção ao meio ambiente podem ser, quando superficiais, bons pacotes fechados para o consumo imediato e o alívio rápido da consciência, visando à compra de uma indulgência social ou ambiental.

Já que a contradição é inerente ao capitalismo e à sociedade de consumo, por que ter pudores ao explorar isso? Sextas-feiras como esta só ajudam a catalisar o processo.

Boas compras.

Lembre-se, contudo, que montar uma pipa com papel de seda, organizar um piquenique no parque, ir a algumas exposições bem legais, pegar emprestado um bom livro, abraçar seu filho ou filha, perder-se num sarau literário e, é claro, ir à praia, se você teve a sorte de viver à beira-mar ou na beira de um rio, não custam quase nada.

Mas são tão grandes que não cabem em caixas de papelão, não podem ser embrulhadas com papel de presente ou mesmo entregues por serviço de encomendas expressas. E, certamente, você não vai querer devolve-las decepcionado com a realidade.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.