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Leonardo Sakamoto

De quem é a culpa se um texto não é lido até o final?

Leonardo Sakamoto

16/01/2015 11h57

Atenção para a saudável conversa que tive com um leitor recentemente:

– Cara, você é um babaca, um otário. Deixou de falar do assunto X de propósito naquele post.
– Opa, queridão, prazer. Claro que falei. E bastante. Tá no final.
– E eu lá vou ler aquela idiotice até o final? Texto longo é pra quem não tem argumento forte. (Observação: o texto tinha seis parágrafos.)
– Concordo. Seguindo a lógica, a gente podia resumir a bíblia assim: Um cara cria as pessoas. Daí as pessoas ignoram as regras e se matam, trepam, traem, roubam, matam mais um pouco. Então, o cara manda o filho para botar ordem na bagunça e matam ele também. Mas ele ressuscita e promete voltar pra passar a fatura.

A princípio muitos vão botar a culpa disso na internet, afirmando que há uma "geração perdida", forjada em espaços de 140 caracteres, memes e vídeos de gatinhos, que não lê, mas apenas vê figuras.

Isso, é claro, não sobrevive à reflexão, uma vez que J.K.Rowling, Stephenie Meyer, E.L James ou mesmo Dan Brown vendem milhões de livros todos os anos, muitos deles catataus com centenas de páginas, que são devorados quase que instantaneamente pela molecada.

Não é que muita gente não goste de ler. Aliás, nunca se leu tanto na história. Eles não gostam de ler certas coisas.

Há algumas ações que professores ou atores da mídia, que querem dialogar com o público mais jovem para a passagem do saber, têm que obrigatoriamente fazer. Incorporar a linguagem e as ferramentas de novas tecnologia na construção das narrativas. Conversar usando também elementos simbólicos da geração ou do grupo com o qual se quer trabalhar. Rediscutir a temática pensando que há o interesse do aluno ou leitor, mas também o que o professor ou jornalista considera importante. Entregar um produto bom e interessante, preparado e pensado, seja uma aula ou um artigo. E, fundamental, descomplicar o discurso.

Mas, mesmo passando por essas barreiras, haverá um outro muro difícil, que não depende apenas de nós como indivíduos: qual a motivação para ler um texto até o final?

Como disse o sociólogo Bernard Charlot, a relação com o saber precede a definição do sujeito e do próprio saber. Um saber só tem valor e sentido por conta da relação que ele produz com o mundo. Não é o livro que tem valor em si, mas o que o aluno fará dele.

Ou seja, muitas pessoas leem mal e porcamente uma reportagem sobre um problema grave na sua cidade, estado ou país porque acham que não precisam lê-la por inteiro para poder seguir sua vida em frente ou se relacionar em sociedade. Afinal de contas, qualquer conhecimento superficial é suficiente para uma conversa de bar.

Se o debate público fosse mais qualificado, a pessoa se sentiria motivada a ler determinados textos até para não ser humilhada coletivamente no Facebook ou no Twitter ao expor argumentos ruins, preconceituosos e superficiais.

O que temos contudo, é que o discurso violento e opressor – mais palatável e que mexe com nossos sentimentos mais primitivos e simples – ecoa e repercute. Esse discurso basta em si mesmo. Não precisa de nada mais do que si próprio para ser ouvido, entendido e absorvido. Vale ressaltar que esse discurso não é de hoje e nem monopólio desta porção tropical do mundo.

Em um debate qualificado quem usa esses argumentos toscos nem seria ouvido. Contudo, fazem sucesso na rede. Colam rápido, colam fácil.

Pois, vale lembrar, quanto mais qualificado o debate em um universo que não sente a necessidade de um debate qualificado, menor a arena para consumi-lo.

Lembrando que "qualificação" não significa elitização, muito pelo contrário. Não é algo chato, hipercodificado, barroco ou acadêmico e sim que ajude o estudante ou leitor a perceber a complexidade do mundo em que vive e o ajude a construir o seu sentido das coisas.

O problema é que não se qualifica o debate apenas através de ações individuais. Você precisa de uma ação em escala, o que teríamos através do Estado – que é o espaço que regula a concepção de educação e os parâmetros educacionais. Ou seja, precisamos repensar o ensino para melhorar o debate público.

Qual a motivação para um jovem se engajar no aprendizado hoje, principalmente em uma escola com poucos recursos, professores desmotivados e pouco valorizados e um currículo questionável?

Ficamos preocupados com taxas de evasão escolar de 20%, dizendo que tudo está desmoronando. Sim, é um dado preocupante. Mas não vemos o outro lado, que a imensa maioria milagrosamente permanece, mesmo não vendo sentido nenhum naquela formação. Como diz o próprio Charlot, esses jovens não têm ideia do que está acontecendo, mas estabelecem uma relação mágica com o saber, esperando que ele faça sentido para a vida deles algum dia.

E ninguém está dizendo para atender a todos os desejos dos alunos. Sabemos que o processo de passagem do saber é algo doloroso porque ele, não raro, destrói visões pré-concebidas do mundo para, depois, ajudar a construir outras, mais sólidas.

O problema é que entre a proposição, aprovação e implementação de políticas públicas de educação, décadas se passam.

Cabe, enquanto isso, a nós que ajudamos a mediar o debate público, a qualificá-lo o melhor possível. Somos nós que semeamos muito do conteúdo que será, posteriormente, colhido, consumido e usado nos diálogos. Se plantarmos ervas daninhas, são ervas daninhas que serão colhidas e consumidas.

Infelizmente, mesmo que alguns qualifiquem o debate, outros vão optar pela saída mais rasa e atraente, nivelando por baixo. Ou seja, é uma batalha de longo prazo que será muito difícil vencer. Mas se alunos seguem acreditando e não desistem, apesar de uma educação que não lhes faz sentido, que direito temos nós de desistir de tentar?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.