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Leonardo Sakamoto

Você acha que sua vida é ruim porque falta iogurte premium no mercado?

Leonardo Sakamoto

28/02/2015 09h36

Um amigo entrou em uma discussão com um desconhecido que o abordou na rua, durante o cortejo de um dos blocos de carnaval em São Paulo. Em determinado momento, sem mais, nem menos, por contrariar o que interlocutor acreditava, levou uma bofetada na cara. Ele, que tem o dobro do tamanho do personagem de Street Fighter em questão, disse para o cara bater do outro lado se isso lhe fizesse feliz – coisa que o rapaz fez.

Ao final, a situação constrangeu o brigão. Para quem assistia a cena, provavelmente seria algo comparável apenas a uma criança estapeando um adulto, que permanecia impassível, com didática paciência.

Particularmente, não tenho o sangue frio que o meu amigo. Por mais que seja banhado diariamente com chorume na rede por quem discorda deste blog, feito Carrie em noite de baile, isso não me traumatiza. Mas seria capaz da mesma altivez de espírito: tentar mostrar ao sujeito o quão ele é ridículo através da demonstração de sua própria ignorância, abrindo, para isso, mão da própria minha integridade física.

Até porque, tenho certeza, a probabilidade maior é a do sujeito ser um pombo enxadrista. Não importa o quão bem você jogue, o pombo derruba as peças, defeca no tabuleiro e sai cantando vitória.

Tempos atrás, um leitor, muito educado, diga-se de passagem, me pediu para que aceitasse que nem tudo é possível de mudar neste mundo (o que concordo). E que, não sendo possível lutar de forma pacífica contra as injustiças, devemos aceitar as coisas como são (o que discordo). Pois grande será nosso galardão na vida após a morte (creio que eles se referia ao "grande vazio", mas tudo bem).

Como já comentei aqui antes, lutar de forma pacífica não significa morrer em silêncio, em paz, de fome ou baioneta. A desobediência civil professada por Gandhi é uma saída, mas não a única e nem cabe em todas as situações. E, vale lembrar, o de barba (Jesus, não Marx), chutou o pau da barraca no Templo. E, se vivesse por aqui hoje, mandaria a cúpula de qualquer religião para o inferno. Pois não era muito afeito a cúpulas.

Não dá para compactuar com as agressões de uma vida bovina, de apanhar por anos, e, ainda por cima, dar a outra face, engolindo as insatisfações junto com o macarrão regado à novela na TV.

E, por favor, não passe vergonha pública dizendo que "agressão" é ir para o supermercado do bairro e não encontrar iogurte grego premium porque ele está em falta. Estou falando de vida real – falta de moradia digna, de comida, de educação de qualidade, de saúde, de empregos decentes. Coisa que muita gente do andar de cima gosta de citar quando vai reclamar da vida ou falar mal de governos, mas faz isso apenas para ajudar na sua argumentação porque – sinceramente – não faz ideia do que seja e nem se interessa em saber.

Leio reclamações da violência das ocupações de terras por povos indígenas – cansados de passar fome e frio, reivindicando territórios que historicamente foram deles, na maioria das vezes com flechas, enxadas e paciência contra balas, hectares de soja, milho e pastagens e conivência do poder público. Muitos pessoas, que perderam a capacidade de sentir empatia, se perguntam, consternados: "por que essa gente simplesmente não sofre em silêncio?"

Muitas das leis desrespeitadas em protestos e ocupações não foram criadas pelos que sofrem em decorrência de injustiça social, mas sim por aqueles que estão na raiz do problema e defendem regras para que tudo fique como está.

Não estou defendendo o "olho por olho, dente por dente". Devemos usar os canais legais contra injustiças e o desrespeito aos direitos humanos. Mas nunca perdendo de vista que, por vezes, é quem detém o poder político ou econômico (e, portanto, o político) o violador desses direitos.

O que fazer quando todas as instâncias de reclamação, nacionais e internacionais, são acionadas e nada acontece? Sofrer em silêncio? Pedir ao Sobrenatural?

Não estou pregando agressividade. Meu amigo fez certo ao não revidar no debate com o mocinho enfezado. Ele estava em posição de superioridade, sabia disso e administrou a situação, ao contrário do pugilista que estava perdido na vida.

O que fazer quando a população mais pobre, que sempre esteve em posição de superioridade numérica, acha que é minoria e age como tal, de forma envergonhada, quase pedindo desculpas por ser explorada até o osso por certos patrões, certos governos e certas elites bizarras? Ainda mais em um Estado que cria leis que cristalizam e justificam a exploração e implantam medidas que mantém a insatisfação dos mais pobres um caso de polícia?

Não estou propondo porrada. Mas muita mobilização social. Para começar, ir às ruas por medidas que diminuam a desigualdade de direitos com a qual o Estado trata o andar de cima e o de baixo.

Pois agressão de verdade é você ser ensinado a aguentar calado uma vida de droga, esperando por um prêmio, em outra existência – que, até me provarem o contrário, não existe.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.