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Leonardo Sakamoto

Seis histórias curtas de dor e violência no campo

Leonardo Sakamoto

01/06/2011 08h58

A vida pode valer muito pouco no Brasil. No campo, menos ainda. Nós, que moramos na cidade e fomos continuamente forjados em um processo de banalização da violência (a ponto de programas de TV do tipo espreme-que-sai-sangue alegrarem o jantar), transformamos mortes em números. Assim é mais fácil seguir em frente. Mas também ignorar o problema. Em um momento em que a execução de trabalhadores rurais na Amazônia ganha destaque, isso se torna bastante evidente.

João Roberto Ripper e Sérgio Carvalho, dois grandes fotógrafos e exemplos no combate por justiça social, publicaram, tempos atrás, o livro de fotos "Retrato Escravo", com o apoio da Organização Internacional do Trabalho. Forte, como o tema pede; bonito, por ser baseado em histórias humanas. Eles me deram o privilégio de contribuir na parte de texto do livro e, por isso, sou imensamente grato.

Trago, abaixo, seis histórias curtas colhidas pelos dois que acompanham as fotos. Elas podem ajudar a ilustrar aquilo que é pasteurizado e desumanizado pela pressa da nossa cobertura diária ou pela busca de audiência e contribuir com a justa indignação, motor da transformação social e política. Essas pessoas são anônimas e continuarão a ser, como tantos outros anônimos que tombam diariamente sem que uma vela seja sequer acesa.

Maria e José
Maria Francisca Cruz é mãe de sete filhos e uma quase viúva. A incerteza, que a deixa em uma corda bamba e a impede de ir adiante, é por culpa de "um tal de Francisco das Chagas". Empreiteiro de serviços e enganador de pessoas, Chico – como tantos outros Chicos batizados em homenagem ao mais popular santo do país – levou-lhe o marido. José Alves de Souza foi convencido pela doce promessa de trabalho na fazenda Bacuri, deixando Santana do Araguaia, no Sul do Pará para trás.

Depois disso, o silêncio.

– Até hoje não recebi notícias, nem dinheiro.

Enveredou-se por outro colo? Está preso? Tem medo de voltar? Quem sabe?

– Falam que morreu gente por lá, que outros conseguiram fugir. Até agora, ele não voltou.

Dor maior não é saber que acabou. É não ter certeza disso.

A esperança nua
João não é velho. Os anos é que não lhe foram leves.

– A última roupa que comprei foi com dinheiro dado de um amigo. Uma camisa pra mim e roupa íntima pra minha mulher.

A vida não fez João rico de confortos, mas de calos e promessas não cumpridas, negando um mínimo de dignidade.

– Vou falar para o senhor…Eu não tenho mais sonho nenhum, não. Tem dia que até durmo transpassado, cansado. Eu não tenho esperança, não espero conseguir mais nada na vida.

Olga pega no seu ombro. Encosta a cabeça e, parecendo enxergar o que não vê, consola o marido e a si mesmo.

– Vai conseguir sim, João, vai sim.

 Antônia
Até o chão daquela terra castigada, acostumado a ver madeira tombar todo o dia, estranhou quando Dona Antônia viajou de longe para tentar fincar duas simples tábuas. Não era nada grande, não, senhor. Mas ao mesmo tempo era maior que o mundo.

Afinal quem pode medir o verdadeiro tamanho de uma cruz?

Antonia mora em Barras, cidade que se acostumou ver seus filhos irem embora em busca de um emprego e de uma vida melhor. Alguns voltam com pouco, outros com menos ainda e há aqueles que nem voltam – perdidos no "trecho", indo de fazenda em fazenda, de garimpo em garimpo, como um marinheiro das estradas, deixando de lado raízes e lembranças. Há ainda aqueles que tombam pelo caminho, repetindo o movimento das árvores da região.

Seu marido havia sido morto na fazenda Primavera, em Curinópolis, Sul do Pará, em 1997. Então, ela saiu em busca de justiça. E de plantar sua cruz. Não conseguiu nenhum dos dois: o crime segue impune e o gerente da tal fazenda impediu Dona Antônia de prestar os seu respeitos porque chamaria a atenção  da polícia.

Um rio muito bonito corta Barras. De tempos em tempo, quando a memória ataca, ele transborda de tristeza.  

Bernardo
Bernardo foi um dos últimos a ver Chico, marido de dona Antônia. Também empregado da fazenda Primavera, foi ele que o enterrou. E quisera o destino que ele enterrasse também outro Chico, piauiense de Batalha, na mesma fazenda.

Diz que o primeiro morreu de morte matada. O segundo, de morte morrida. De "enfraquecimento". Batalha longa, contra a fome e a doença, morrendo um pouco por dia.

Seu Sarney
Osmar Rodrigues da Silva é conhecido como "Seu Sarney". Não fez o caminho do outro Sarney, em direção à Brasília, mas tomou rumo Oeste, saindo do Piauí para o Sul do Pará em busca de emprego. Começou a trabalhar na fazenda Franciscana, em Água Azul do Norte, em 1996. Ano triste para a região. Em abril, 19 trabalhadores rurais sem-terra foram massacrados pela Polícia Militar por reivindicarem seus direitos em Eldorado dos Carajás.

Enquanto esteve na fazenda, seu Sarney nunca recebeu salário.

As coisas foram ficando cada vez mais escuras até que, um dia, desapareceram. E, na escuridão, o pouco que recebia do fazendeiro também desapareceu.

Hoje, aposentado, mora com uma sobrinha em Floriano, Piauí. Mas permanece sozinho no escuro, pois já era tarde para ter sua visão de volta.

Seu Sarney não enxerga. Mas é menos cego do que quem tem dois olhos bons e não vê trabalho escravo no país. Na Brasília, do outro Sarney, há muitos assim.

Sidney Pereira dos Reis
Sidney Pereira dos Reis nasceu em 1986. Ano de Copa do Mundo no México – torneio, que vale lembrar, o governo brasileiro rejeitou depois que a Colômbia não pode mais sediá-la. A seleção passou pela Espanha, a Argélia, Irlanda do Norte, Polônia. Mas, para a tristeza de milhões por aqui, caiu diante da França, que defendeu um pênalti de Zico – logo ele – no segundo tempo.

Sidney, como Zico, era franzino quando o conhecemos em 1996. E sonhava ser jogador de futebol, como Zico. Só que, ao contrário do ídolo rubro-negro, não tinha uma bola de futebol como companheira inseparável, e sim uma pá de carvão. O campo de futebol lhe foi negado e oferecido em troca uma carvoaria. E no lugar do calor da partida, vivia no inferno sombrio das torres de fumaça que subiam aos céus, levando consigo suas orações e sua juventude.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.