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Leonardo Sakamoto

Os carros de São Paulo querem ser barcos. De guerra

Leonardo Sakamoto

16/01/2013 16h22

Quando as tropas nazistas bateram em retirada, e antes do Exército Vermelho chegar, certas cidades na Europa experimentaram um período de anomia, no qual não havia ninguém para controlar a aplicação da lei, muito menos lei para ser aplicada. Mas, ao contrário do que se possa imaginar, em alguns locais não houve o esperado cada-um-por-si-e-o-sobrenatural-por-todos. Os sobreviventes organizaram regras e comportaram-se de forma solidária. Relatos contam, inclusive, a convivência pacífica de soldados alemães feridos que foram deixados para trás com os antigos dominados.

Não estou querendo dizer que o Estado corrompe o ser humano e sem ele, tudo funcionaria melhor. Também não é uma crítica ao anarquismo – tão belo, utópico e incompreendido. Pois não estou falando de modelos teóricos que analisam a relação do indivíduo com sua sociedade, muito menos fomentando o protagonismo individual e a substituição do Estado, mas sim sobre a consequência da saída brusca e violenta do Estado em um contexto de conflito armado. E com isso acabo de escrever a frase mais chata e desnecessária da história deste blog.

Todo esse blablablá para dizer que a energia acabou no Principado do Sumaré, bairro de classe média alta da capital paulistana. Bastou os semáforos se apagarem para que um salve-se quem puder se instalasse nas ruas da região, com cenas de selvageria explícita só comparáveis a disputas de bigas romanas. Na ausência de algo para colocar a ordem, foi o caos, mostrando o quão somos idiotas.

Na cidade, paulistano é hidrofóbico (já, na praia, entra no mar em dias frios e de chuva…) Talvez porque o desejo íntimo dos carros de São Paulo seja nascerem barcos em sua próxima encarnação para poderem navegar pelos rios que se formam na época das chuvas. Decerto, essa vontade louca dos automóveis de mergulhar em água suja alimenta o pavor do morador da cidade. Isso exacerba o comportamento já violento dos motoristas, que passam a lutar insanamente, acreditando que sua própria sobrevivência depende de quão agressivos eles podem ser. Tipo, "ou eles, ou eu".

Um carrinho de bebê, aos trancos, salvou-se de ser atropelado por um possante prateado – que ainda teve a pachorra de abrir o vidro para xingar uma mãe de guarda-chuvas por atravessar em faixa de pedestres num dia molhado – lembrando a fúria de "O Encouraçado Potemkin". Eisenstein nem precisaria da escadaria para filmar por aqui. Afinal, o desejo dos carros da cidade não é de ser qualquer barco e sim naus de guerra.

Provavelmente aconteceria também em outros bairros, mas é engraçado como se dissolve em água feito vitamina C efervecente aquela tese da nossa gloriosa elite de que o nível de consciência da cidadania é diretamente proporcional à renda.

Enfim, São Paulo é dos carros. Pedestres são uma espécie em extinção.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.