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Leonardo Sakamoto

O sabiá-laranjeira deveria estar nas páginas policiais

Leonardo Sakamoto

16/09/2013 12h41

Senti a voz roucas das ruas xingando meu nome. A ironia é que o motivo não foi a defesa da reforma agrária ou os ataques ao consumismo de ostentação que dá sentido à classe média, mas minhas críticas à falta de bom senso do sabiá-laranjeira.

Recebi um rosário de mensagens lamentando minha falta de amor pela natureza por conta dos petardos que mandei contra o canalha nas últimas semanas. Isso sem contar os comentários de amigos e amigas que concluíram que peguei pesado demais com a ave.

Olha, eu não sou preconceituoso, mas…

Como já disse aqui antes, tenho dormido umas três horas por noite tendo como culpado o trabalho (atenção, crianças, ser workaholic não é legal apesar do que a sociedade te ensina). E, para piorar, lá pelas 3h30, uma ave se põe a tagarelar na minha janela como se não houvesse amanhã. Não sou ornitólogo, mas este exemplar deve ter batido algum recorde, com cantorias que chegam a dois minutos non-stop.

De tão perto, parece que o bicho pulou no meu colo e se pôs a reclamar. Ninja, fecha a matraca e desaparece sorrateiro assim que abro a janela pronto para estrangulá-lo, talvez observando do telhado, rindo de meu infortúnio.

Nesta segunda (16), a Folha de S. Paulo soltou uma pertinente matéria sobre o canto do laranjeira dividir a opinião dos paulistanos. Finalmente, após anos sendo minoria na metrópole (contra a pena de morte, a favor do direito ao aborto e à eutanásia, em defesa do desarmamento, contra a redução da maioridade penal, pela criminalização da homofobia e por uma lei que impeça o Palmeiras de cair para a segundona) percebo que há vários descontentes. A matéria está muito boa, mas não nego que fiquei com saudades do Notícias Populares. Pois o lugar correto do passarinho seria nas páginas policiais.

Descobri, por conta da reportagem, que ele canta à noite para ensinar os filhotes, demarcar território e se exibir paras fêmeas. Seria fofo, se estivesse longe. E o pior: o piado segue até o verão.

Um amigo me inquiriu se eu preferia uma britadeira, um busão ou uma balada na frente da minha janela. A comparação maniqueísta é meramente retórica, por certo, uma vez que, para os três anteriores, tenho como ir lá e argumentar. No limite, fazer uma queixa ao Psiu!, feito aqueles chatos que acham que São Paulo tem que ser um túmulo na madrugada.

Mas o que faço no caso de um passarinho? Rezo e peço intervenção divina? Considerando que "sabiá", em tupi, significa "aquele que reza muito" já saio em desvantagem com o bicho perante o Sobrenatural.

Isso sem contar que Gonçalves Dias, Chico Buarque, Patativa do Assaré, Carlos Drummond de Andrade, Milton Nascimento, Jorge Amado, todo mundo já elogiou a ave. Fernando Henrique decretou-a como um dos símbolos do país. Fica difícil ir contra um bicho com costas quentes assim…

Refletindo, nesta madrugada, enquanto tentava fazer uma busca no oráculo para saber quais os sons feitos por predadores naturais do bicho, talvez tenha encontrado o porquê de tudo isso. Há muitos anos, descobri um filhotinho de sabiá-laranjeira no quintal da casa de meus pais. Recém-nascido, o bichinho – que era feio de dar dó – deve ter tropeçado para fora do ninho ao rir da condição humana. E, apesar de piados que interpretei como tristeza e desespero do pai, não conseguimos devolvê-lo. Montamos um ninho numa caixa de sapatos e deixamos ele por lá, alimentado e quentinho.

Algum tempo depois, sumiu. Quero crer que voou ou foi levado de volta.

Talvez o bicho na minha janela seja ele adulto ou um de seus herdeiros agradecendo a mãozinha. E que, em tradução livre, a cantoria signifique em sabianês "Valeu, Japa, meu velho!".

Se for isso, gostaria carinhosamente de avisá-lo que não sou chegado nessas coisas de vassalagem e ele e sua prole não têm dívida comigo.

Você está livre. Voe para longe, amigo. Bem longe.

PS: Atenção, texto com ironias e figuras de linguagem. Ultimamente, se não avisar, há gente que leve ao pé da letra.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.