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Leonardo Sakamoto

Neste 12 de outubro, parabéns a todas as crianças que trabalham

Leonardo Sakamoto

12/10/2013 04h25

Hoje é Dia das Crianças. Data comercial, menos importante economicamente que o Natal, o Dia das Mães e o Dia dos Namorados (nessa ordem) mas, ainda assim, com um significado para muita gente que gosta de usar fotos antigas nas redes sociais – e, portanto, a ser respeitada. Neste momento, enquanto alguns desembrulham seus carrinhos e bonecas (ou videogames, celulares e iPods), outros vão passar o sábado trabalhando. No máximo, alguns darão uma paradinha para ir à missa em homenagem a Nossa Senhora Aparecida.

As Nações Unidas estipularam a meta de acabar em 2016 com as piores formas de exploração infantil, como a exploração sexual de crianças e adolescentes, o trabalho urbano informal (comércio ambulante, por exemplo) e ilícito (tráfico de drogas), o trabalho rural e o trabalho doméstico.

Mas não vai dar. Nem lá fora, nem aqui. Apesar da queda índices no Brasil e dos avanços do combate em vários cantos do mundo, não temos agido com a velocidade necessária para combater a miséria e a pobreza (que empurram crianças para a degradação e não garante oportunidades de educação, cultura, lazer, saúde, enfim, dignidade), a impunidade (que garante a certeza de liberdade para quem rouba a infância) e a ganância (a facilidade de ganho fácil de quem explora esse tipo de mão de obra barata em suas cadeias produtivas).

Para cumprir a meta de erradicar as piores formas de trabalho infantil e juvenil até 2016, seria necessário retirar pelo menos 85 milhões de crianças e adolescentes envolvidos no problema em todo o mundo. Segundo Tereza Campello, ministra do Desenvolvimento Social, há 2 milhões de jovens acima de 16 anos trabalhando no Brasil, além de 1,5 milhão com menos de 16 anos.

Cansei de ouvir e presenciar histórias dessas crianças e adolescentes nos últimos anos. É menina subindo em boleia de caminhão em posto de gasolina entre o Tocantins e o Maranhão, adolescente explorada sexualmente para benefício dos trabalhadores das obras da usina de Belo Monte, crianças libertadas na produção de frutas, batata, cebolas, entre outros, no rico interior de São Paulo, menino que perdeu a visão ao tropeçar na colheita de cacau, crianças quebrando pedras para sobreviver, trabalhando em residências em tempo integral… Conto duas delas:

O cerqueiro

Cerqueiros perfuram o chão, plantando mourões e passando arame por quilômetros a fio sob o sol forte da Amazônia. O serviço é pesado: dependendo do relevo, a cabeça arde por dias até que se complete um quilômetro de cerca. O pequeno açude, turvo e sujo, serve para matar a sede, cozinhar e tomar banho. Um perigo, pois a pele fica impregnada com o veneno borrifado para tratar o pasto. Dessa forma, a terra vai se dividindo – não entre os cerqueiros, que continuarão sonhando com o dia em que plantarão para si, mas em grandes pastos para os bois. Dentre os trabalhadores, olhos claros e pele queimada, Jonas, de 14 anos.

Analfabeto, me contou que morava em uma favela em Eldorado dos Carajás (PA) com a família adotiva e ia ao campo para ganhar dinheiro. Foi dado de presente pela mãe aos três anos de idade e trabalhava desde os 12 para poder comprar suas roupas, calçados, fortificantes e remédios – até então, já tinha pego uma dengue e cinco malárias. Com o que ganhava no serviço, também pagava sorvetes e lanches para ele e seus amigos. E só. Segundo Jonas, a adolescência não era tão divertida assim: "brincadeira lá é muito pouca."

A lei é bem clara – nessa idade, permite ao jovem apenas a condição de aprendiz, em uma escola destinada a esse fim. O trabalho que Jonas realizava só seria permitido a partir de 18 anos e, ainda assim, sem as condições insalubres a que estavam expostos os cerqueiros.

Seu padrasto era um dos "gatos" da fazenda. Gato é como são chamados os contratadores de serviços, que arregimentam pessoas e fazem a ponte entre o empregador e os peões. Porém, isso não lhe garantiu nenhum tratamento especial: teve que descontar do salário a bota que usava para trabalhar. Perguntei para o padrasto se isso era justo. Ele, de pronto, me respondeu que não considerava a venda do calçado para o próprio filho errado e justificou: "como vou sustentar a minha mulher?"

O alojamento que Jonas dividia com os outros era feito de algumas toras fincadas no chão, um pouco de palha e uma lona cobrindo tudo. O sol transformava a casa improvisada em forno, encurtando, assim, a hora do almoço. Redes faziam o papel de camas, penduradas aqui e ali para embalar, entre um dia e outro de trabalho, os sonhos das pessoas. O de Jonas, como vários outros rapazes da sua idade, era ser jogador de futebol.

Presença garantida nos times dos mais velhos, participava de jogos e campeonatos quando eles aconteciam. Queria ser profissional, mas apesar de gostar dos times do Rio de Janeiro e de São Paulo, preferia ficar lá mesmo no Pará – quem sabe, algum dia, vestindo as camisas do Paysandu ou do Remo. Por nunca ter ganho na vida um presente de aniversário, não esperava nada naquele ano. Mas disse que pediria uma bola – se pudesse.

Muitos jovens, como Jonas, querem ser jogadores de futebol. Talvez porque gostem do esporte como nós. Ou talvez porque vejam nele a possibilidade de se verem livres daquela vida, com a bola carregando-os para bem longe, longe o bastante para nunca mais voltar.

O pirata

A fantasia nova era seu orgulho. E ele, o orgulho dos pais. Espada de plástico, calça, colete, botas e lenço na cabeça – sem esquecer de um indefectível tapa-olho – faziam do menino um pirata no carnaval de rua daquela cidadezinha do interior. A mãe municiava seu pequeno corsário de confete, com o qual ele atacava, sem cerimônias, os transeuntes. Enquanto isso, o pai registrava tudo com uma câmera de vídeo digital – para a posteridade, sabe como é, os filhos crescem rápido demais.

Sem que fosse sua intenção, um dos ataques de bolinhas de papel acertou em cheio um outro menino, fantasiado de catador de latinhas de alumínio. Fantasia sem graça aquela, feita por uma camiseta esburacada, bermuda encardida e pés descalços. Ao invés de uma reluzente cimitarra de plástico, cinco ou seis latinhas de cerveja carregadas na improvisada bacia formada pelos braços. O tamanho dos dois era o mesmo, tiquinhos de gente de seis anos, no máximo.

O menino fantasiado de catador de latinhas, que seguia em uma marcha firme, se detém. Sem dizerem nada, por um instante, se olham. O pirata deve ter pensado que fantasia estranha era aquela, cheirando a cerveja. Não seria melhor deixar aquelas latinhas ali e vir brincar com ele? Havia confete para todo mundo no saco da mamãe. E a rua era grande o suficiente.

O olhar do outro parou em misto de inveja e resignação – apesar dele não ter idade para entender o que é inveja, muito menos resignação. Ter um fantasia bonita e colorida como aquela seria bom demais. Não ter que trabalhar na noite de domingo, poder brincar com os pais, melhor ainda. Mas o tempo corria – o tempo sempre corre. Tinha que procurar mais latinhas porque a concorrência estava alta e a festa, como a infância, não ia durar muito mais tempo.

Virou o rosto para frente, continuou sua marcha e se perdeu na multidão. O outro ainda ficou parado um instante. Depois, enfiou a mão no saco de confetes e jogou novamente para cima, formando uma chuva de papel.

Afinal de contas, era carnaval. Na Quarta-feira de Cinzas tudo voltaria ao normal.

Como já disse aqui, quando trago algum texto sobre trabalho infantil, muitos leitores bradam: "eu trabalhei desde cedo e isso moldou meu caráter"; "aprendi a dar valor às coisas com meu suor desde pequeno"; "crianças ou está vagabundeando ou está trabalhando". Até entendo que muita gente sinta que sua experiência de superação é bonita o suficiente para ser copiada pelo filho ou filha. Até virar filme. Mas será que não imaginam que o trabalho infantil, que atrapalha o desenvolvimento da criança, não precisa ser hereditário? E que a luta maior é por criarmos condições para que ela tenha educação de qualidade, possa brincar e preparar para o momento em que será realmente demandada pela sociedade?

Com menos tempo para se dedicarem a seu crescimento, as crianças tornam-se adultas que sabem o seu exato lugar na sociedade e trabalharão duro para o crescimento do país, mas sem – necessariamente – refletirem sobre seus direitos e sem criticarem seus chefes e governantes por péssimas condições de vida.

O fato é que a programação que muitos receberam ao longo da vida, seja pelas circunstâncias, seja pela mídia e outra instituições sociais, foi tão boa que acreditam realmente que só "o trabalho liberta", como o diz o portão do lugar aí embaixo.

 

Enfim, Feliz Dia das Crianças.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.