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Leonardo Sakamoto

Pior que vestir Noel de veludo no calor é exigir gravata em prédio público

Leonardo Sakamoto

25/12/2013 12h52

Eu sei que atuar como Papai Noel garante um bom dinheiro para muita gente. A demanda de shopping centers, empresas e festas de família por esses atores é tamanha que os que têm melhor performance conseguem juntar o suficiente para o ano inteiro. Melhor do que a merreca que pagam para a maior parte dos frilas de jornalista, por exemplo… #invejadaboa

Mas não consigo deixar de pensar toda vez que vejo alguém suando cântaros em uma fantasia da cor de lata de refrigerante que vestir veludo e similares é extremamente nonsense em um país em que, em dezembro, o termostato está ajustado para a posição "gratinar".

Essas tradições importadas e que, reafirmadas ano após ano, deixam de ser questionadas no melhor estilo I-Juca-Pirama (em tudo o rito se cumpra), me deprimem. O pior é quando esses costumes alienígenas fazem parte do relacionamento entre o poder público e a sociedade.

Apesar de ir sempre paramentado à capital federal, vez ou outra deixo as línguas de pano descansando em casa. Afinal de contas, este é um país tropical. E por estar sem gravata, já fui impedido de adentrar determinados recintos nobres do Congresso Nacional. Até porque o regimento da Casa do Povo precisa ser respeitado, mesmo que o fundamental direito de ir e vir seja ignorado para isso.

Certa vez, como ia a um ato civil na Câmara dos Deputados, achei que poderia deixar a língua de pano em casa e ir só de paletó. Contudo, fui impedido de entrar no Salão Verde, espaço em frente ao Plenário, por estar sem gravata. "O regimento tem que ser respeitado",  disse o segurança.
 Mas estão chegando muitas pessoas de organizações sociais, que não possuem terno. Como vão poder participar do ato?
 "Só entram pessoas de gravata." Nem Kafka com um processo nas costas se divertiria tanto.

Não é irritante um troço como a gravata funcionar como passaporte para entrar em recintos? Se você não tem ou não tem uma boa alma que empreste para você, dançou neném: fica do lado de fora. Entendo que existam formalidades, mas que deveriam ficar restritas a ambientes privados. Até porque respeito não deveria ser obtido através de vestimentas, mas de ações.

Esse tipo de política exclui a esmagadora maioria da população brasileira de transitar por alguns espaços públicos. Ou seja, é um ato de preconceito de classe levado a cabo por quem deveria atuar pela defesa da igualdade de direitos. Essa bizarrice também é muito útil para mostrar como funciona o poder: se agarra a uma preocupação imbecil ao passo que promove o toma-la-da-cá e o compadrio serelepes pelos corredores.

Neste ano, a Câmara Municipal de São Paulo passou a proibir a entrada de pessoas vestidas com shorts e bermudas ou usando chinelos. Segundo a assessoria da Presidência de lá, responsável pela norma, isso já ocorre em outros órgãos públicos da cidade.

Em muitos escritórios da Organização das Nações Unidas, contudo, é facultativo o uso de terno pelo motivo mais óbvio: economia de energia elétrica que seria usada pelo ar condicionado.

Existe cena mais surreal que uma pessoa trajando um pesado paletó pedir para ligar o ar frio porque está com calor? Economizar para quê? Se precisar de mais energia, é só expulsar alguns milhares de índios, ribeirinhos, camponeses e quilombolas e construir uma hidrelétrica no lugar. Com o bônus de agradar os doadores de campanha, ops, quer dizer, promover o desenvolvimento.

Até porque, como já disse aqui antes, parafraseando o genial Gianfrancesco Guarnieri, índios, ribeirinhos, camponeses e quilombolas não usam black-tie. Tampouco, gravatinha. Vão de bermudas e chinelos que, simbolicamente, é veste de "ralé", de povão.

Seguem correndo por fora, esperando o dia em que possam adentrar em sua cidadania sem precisar se fantasiarem para isso.

Quem sabe se usarem veludo vermelho…

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.