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Leonardo Sakamoto

E se os presidenciáveis fizessem um acordo pelo direito ao aborto?

Leonardo Sakamoto

29/12/2013 13h26

A campanha de 2010 foi algo como um conclave, em que parecia não estarmos escolhendo um presidente da República e sim um novo papa por conta dos temas alçados ao debate público. Já 2014 será o ano de enterrar os direitos humanos em discussões associadas à questão da segurança pública, como a redução da maioridade penal. Bem, já discuti o tema por aqui e irritei muito leitor com sangue nos olhos – o que me trouxe grande satisfação.

Nenhum dos quatro principais pré-candidatos até agora – Dilma, Aécio, Eduardo e Randolfe – irá abraçar um discurso mais conservador-religioso, apesar da influência de seus partidários e coligados. Pelo menos, não abertamente. Isso poderia depor contra uma imagem de modernidade e renovação que eles devem assumir para tentar conquistar o eleitorado.

Posto isso, queria propor um pacto. Não, pacto, não porque vão falar que é coisa do demo. Um acordo.

Os direitos humanos são um dos temas que mostram convergência entre alguns setores do PSDB, PSB, PSol e PT. Nessas agremiações, houve quem defendeu o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos, lançado no final de 2010, e que sofreu pesadas críticas se setores da sociedade como a igreja, os militares e o agronegócio. Os responsáveis pela área de direitos humanos do governo FHC, como o professor Paulo Sérgio Pinheiro, foram mais enfáticos na defesa do então ocupante da cadeira,  Paulo Vannuchi, do que muitas pessoas do próprio governo Lula durante a polêmica do PNDH.

Não estou dizendo que os partidos são iguais, longe disso. Apenas que há temas que encontram ressonância entre eles e que direitos humanos pode ser um deles – o atual PNDH manteve pontos, que hoje são considerados polêmicos, da sua primeira versão, lançada em 1996, sob o PSDB, por exemplo.

Nesses partidos, há muitos contrários à adoção da pena de morte, à redução da maioridade penal e à prisão perpétua, e favoráveis à eutanásia, à ampliação dos direitos reprodutivos, à adoção de filhos por casais do mesmo sexo, à descriminalização do uso de drogas. Seja por anseio de igualdade, seja pela defesa do liberalismo.

Não acredito que Dilma, Aécio, Eduardo e Randolfe, na solidão de suas crenças pessoais, não concordem com muitos desses pontos acima. Ou, mesmo que discordem de alguns, não creio que entendam que a garantia de determinados direitos de minorias é uma questão de opinião individual e não de política pública.

Lula já declarou que não importa que ele seja pessoalmente contra o aborto, mas sim que o tema deve ser tratado como saúde pública, uma vez que mulheres pobres morrem por causa de interrupções de gravidez feitas de forma precária. Fernando Henrique defende a descriminalização de drogas como parte do combate ao problema, tornando-se, nos ültimos anos, uma das principais vozes globais sobre o tema.

Vamos imaginar uma situação hipotética: considerando que quatro candidaturas vão ter a atenção dos holofotes, nada impediria que fechassem posição sobre alguns desses temas, comprometendo-se a implantar uma plataforma mínima para que o país desse um salto no respeito aos direitos humanos, caso eleitos. Sobraria tempo para debater outros assuntos relevantes.

Já que os agentes do discurso da segurança não vão deixar que o tema não seja usado como munição, sugiro a pauta do direito ao aborto. Um acordo em que, uma vez eleitos, os candidatos aceitarão avançar no debate através do envio de projetos de lei, na garantia real de atendimento de mulheres para os casos já previstos em lei (que hoje esbarra em uma série de problemas) e apoiar com mais vigor, junto ao STF, ações que rediscutam a interpretação ds lei quanto às limitações a esse direito.

Qual a consequência para suas campanhas? Perderiam apoio dos aliados mais conservadores? Considerando a qualidade de quem está do lado deles, isso seria uma benção, não um problema.

Perderiam eleitores que já votaram neles e afugentariam fundamentalistas? A perda seria para todos.

Seriam abandonados por parte de seus correligionários? Duvido. A busca pelo poder move montanhas.

Afinal, ser uma democracia de verdade passa por atender aos anseios da maioria, mas garantindo a proteção da minoria.

Isso, é claro, está no plano da utopia, e soa a idiotice, porque a política real, cheia de traições e puxadas de tapete, não permitiria isso. Além do mais, a guerra campal e a baixaria já estão instaladas.

Por muitos, a porrada será a opção escolhida. E não duvido que vivenciemos novamente experiências bizarras da eleição de 2010, quando houve até crianças apanhando de coleguinhas nas escolas de classe média alta paulistana porque disse que o pai votou em uma pessoa diferente dos outros pais. A verdade é que vivemos um momento em que o debate público com possibilidade de construção coletiva está interditado.

E, para piorar, a campanha eleitoral não é o melhor momento para a discussão de temas públicos relevantes – ao contrário do que a teoria afirma. Pelo contrário, é quando marqueteiros dobram a realidade, procurando mexer com a emoção e não a razão dos eleitores. Qualquer tema que seja visto com potencial de angariar ou tirar votos será tratado como um carro em anúncio de TV. E vendido como tal. Ou seja, a verdade sobre o objeto em questão é um mero detalhe.

O melhor momento para discutir o tema seria ao longo de todo o ensino básico, com anos de reflexão em salas de aula, mas também em outros espaços comunitários e sociais, com pessoas preparadas para levantar junto aos jovens todos os pontos de vista, convidando-os a refletir sobre eles. Mas, apesar de direitos humanos ser tema transversal na educação, não tenho nenhuma fantasia de que isso ocorrerá no curto prazo.

Além disso, estamos na adolescência da internet. As pessoas estão descobrindo ainda como é gostoso ser irresponsável em debates nas redes sociais. Acham que não têm nada a perder em um falso anonimato. Com o tempo, isso vai passar. Mas, até lá, aguente a gritaria surda do pessoal com os hormônios à flor da pele, de um lado e de outro.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.