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Leonardo Sakamoto

A extinção do povo que considerava carro mais importante que gente

Leonardo Sakamoto

08/01/2014 15h38

Um dia, quando arqueólogos ETs forem estudar nossa civilização milhares de anos depois de termos sido extintos por conta de alguma burrada que certamente cometeremos, eles vão ter uma dificuldade gigantesca de entender como uma parcela considerável dos habitantes deste planeta considerava máquinas desenhadas para transportar como parte integrante de seus próprios corpos.

Perguntarão como muitos membros dessa estranha civilização dedicavam mais tempo à manutenção desses equipamentos do que à sua própria prole. Ficarão de queixo caído ao entenderem que, quanto mais aceleravam em velocidade, esses seres esqueciam a tristeza de empregos ruins, de casamentos que deram errado e da falta de perspectivas para a vida. E como esses habitantes mudavam repentinamente de humor e de comportamento quando utilizavam as máquinas! Nesse sentido, a futura redescoberta do vídeo "Pateta no Trânsito", da Disney, poderá ser a cereja do bolo desse paradigma.

Ficarão intrigados, especialmente, ao perceberem que muitos homens não usavam carros como meios de locomoção mas, sim, como projeções de seus membros sexuais. Por compensação. Por frustração. Obedecendo à programação passada a eles por outra maquininha, a TV, não importa.

E decepcionados quando entenderem que havia um sentimento coletivo de que a dignidade das pessoas era menos importante do que a liberdade dessas máquinas.

Certamente ao acessar os registros dessa civilização extinta, chegarão ao dia 07 de janeiro de 2014, quando mais um ciclista foi morto em São Paulo, um frentista, de 42 anos. E, independentemente das causas e responsabilidades, se fizerem a besteira de lerem os comentários da notícia postados por leitores na época, terão um exemplo claro dessa simbiose homem-carro.

Ideias como "a rua é para carros – quer andar de bicicleta, vá a um parque", "eu não sou contra bicicletas, até tenho uma, mas sou contra as pessoas as usarem para andar na rua", "São Paulo não é para bicicletas e nunca será", "ciclistas colocam em risco a vida de motoristas com sua imprudência", "faixas de bicicletas é uma idiotice porque atrapalham o trânsito logo no domingo!".

Daí, os ETs fecharão a página de comentários. E cancelarão imediatamente a pesquisa sobre as ruínas de nossa civilização, ordenando a destruição completa do que restou do planeta. E seguirão para Marte, porque lá as coisas fazem mais sentido.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.