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Leonardo Sakamoto

Prendam-me! Mas, por Deus, treinem interpretação de texto

Leonardo Sakamoto

22/04/2014 18h27

Há coisas que me deprimem. Outras, não. Críticas não me deprimem. O bom embate de ideias não me deprime. Processos judiciais não me deprimem. Concordando ou não com a justiça desse atos, isso faz parte do jogo se você debate publicamente.

O que me deprime de verdade é a incapacidade humana de interpretar um texto. Não estou falando de ironia porque, afinal de contas, o milagre é que ela seja entendida e não o contrário, dado que quem escreve e lê na internet não compartilha, necessariamente, dos mesmos elementos simbólicos. O que não faz dela menos saborosa, é claro. Também não estou falando de quem não teve acesso a uma educação de boa qualidade e conta com dificuldades para ler algumas figuras de linguagem e afins. Mas e quem a teve e não faz uso dela?

Creio que alguns de vocês já devem ter lido um texto meu que defende que a ostentação deveria ser crime (o próprio título, um sarcasmo) e que gerou polêmica. Tenho que confessar que quando o publiquei cheguei a pensar: "nossa, peguei leve". Gosto dele, não é um dos melhores, claro, mas é ótimo para estudar como uma parcela da população, principalmente uma parte da classe média alta que lêem "vovó viu a uva" e interpretam como "vovó é comunista e come criancinhas" não consegue se conectar com o mundo à sua volta.

Ironicamente, um amigo promotor me enviou o texto abaixo, dizendo que eu acharia divertido. Quantos aqui podem dizer que uma petição on-line tenta censurar o seu trabalho? Eu achei mó legal!

Sei que, olhando de fora, vocês devem se perguntar: putz, o japa é masoquista? Não é isso. Essa interação pode ser um belo laboratório sobre o comportamento humano, pelo menos de uma parte da sociedade que, particularmente, eu gostaria de conhecer melhor. Seus hábitos, o que comem, como é sua vida sexual. Se é que possuem vida sexual.

Relendo a petição abaixo, percebi que os trechos que  escolheram para me criticar poderiam ser usados para me elogiar também hehe. Eu até ia explicar que o texto não defende a "legalização do assalto" (tem um cara na internet que me ama e fez um texto ótimo sobre isso, me descascando, que vale a pena ser lido), mas, não. Deixe o pessoal continuar fazendo petições. Tenho fé que, de repente, em meio aos debates criados para mandar este que vos escreve para a cadeia, uma hora algum deles se perguntará: mas será que aquele japonês fuinha quis dizer isso mesmo?

Nesse momento épico, trombetas vão tocar, e me sentirei feito a cobra que, sorridente, entregou o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, vendo o circo pegar fogo.

OK, a alegoria foi brega pra diabo. Mas é o que temos para hoje porque acabou o café.

Por fim, peço desculpas aos leitores. Pois, depois dessa petição, não há mais como segurar. Não foi minha intenção fazer essa sacanagem com vocês por tanto tempo. Tenho que confessar: sim, eu tenho um nome do meio.

 

Petição dirigida a: Ao Ministério Público
EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) DOUTOR(A) PROMOTOR(A)

Nós, abaixo assinados, requeremos a apuração de fatos imputados ao Sr. LEONARDO MORETTI SAKAMOTO, jornalista colunista do Portal UOL (http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/), pelas razões de fato e direito a seguir:

I – DOS FATOS

1. É público e notório que o jornalista Leonardo Sakamoto utilizou a sua página no Portal UOL para promover a apologia aos crimes de furto e roubo, além de imputar às vítimas a culpa pela violência sofrida. Para o jornalista, não apenas deveria haver o perdão ao crime praticado pelo bandido, como também a responsabilização criminal da vítima.
2. O jornalista, em seu artigo "Ostentação Deveria Ser Crime Previsto no Código Penal" (18/06/2012), após dizer que não temia ser assaltado pois não possuía bens materiais de valor, escreveu que "Ostentação em um país desigual como o nosso deveria ser considerado crime pela comissão de juristas que está reformando o Código Penal. Eles não estão propondo que bulling seja crime? Ostentação é mais do que um bulling entre classes sociais. É agressão, um tapa na cara."
3. Ainda nesse artigo, o jornalista foi além: defendeu a existência de um suposto direito do bandido ao ato de roubar, e arrematou levantando a bandeira do ódio à polícia: "(…) sabemos que, dessa forma" (ou seja, através do roubo), "o jovem pode ajudar a família, melhorar de vida, dar vazão às suas aspirações de consumo – pois não são apenas os jovens de classe média alta que são influenciados pelo comercial de TV que diz que quem não tem aquele tênis novo é um zero à esquerda. Ganhar respeito de um grupo, se impor contra a violência da polícia".
4. Por fim, o jornalista emitiu uma sentença que soa como uma grave ameaça à sociedade: "Ou a cidade será boa para todos ou a aristocracia que sobrar após o caos não conseguirá aproveitar sua pax paulistana."
5. Sendo o jornalista titular de uma coluna em um dos maiores portais do Brasil, muito mais grave se afigura essa apologia ao crime, tamanho o alcance da mensagem veiculada.
II – DO DIREITO
Ao escrever o mencionado texto, o jornalista incorreu no crime de apologia e incitamento ao crime, tipificado no art. 287 de nosso Código penal, que reza:
"Art. 287. Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime:
Pena – detenção de 3 (três) a 6 (seis) meses, ou multa."
III – DO PEDIDO
Isso posto, solicita-se à Vossa Excelência que requeira a instauração do competente inquérito policial ou proceda diretamente ao inquérito sobre os fatos acima relatados, para que, posteriormente, possa ser promovida a persecução penal contra o Representado, ou seja, o jornalista LEONARDO MORETTI SAKAMOTO, em face do crime de apologia de fato criminoso, praticado em 18 de junho de 2012 através de artigo publicado no link http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2012/06/18/ostentacao-diante….
Nestes termos,
Espera-se o deferimento.
Brasília, 5 de abril de 2014.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.