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Leonardo Sakamoto

Nestas eleições, aprendam: "mulher" é uma coisa, "vaca" é outra

Leonardo Sakamoto

21/08/2014 09h42

"Vaca" e "galinha" não são análises de honestidade e competência de qualquer candidata a um cargo público e sim uma forma machista de depreciar uma mulher simplesmente por ser mulher. De colocá-la no seu "devido lugar", que é fora da política institucional.

Isso vale, por exemplo, para Marina Silva e para Kátia Abreu. Pois a origem da truculência masculina percorre todo o espectro político.

É triste que, a medida em que aumenta o número de candidatas a cargos públicos (apesar da proporção ainda ser ridicularmente baixa), tenho a impressão de que também cresce o chorume daqueles que, aberta ou veladamente, as atacam por uma questão de gênero.

Pois o significado de "vaca" e "galinha" que os ignóbeis usam não remete ao dos simpáticos animais, mas sim o de termos que denotam uma crítica moral sobre um comportamento sexual.

É meio ridículo explicar a adultos que mulheres, em nenhuma hipótese, devem ser confundidas com ruminantes. Ou chamadas de "prostitutas" como xingamento genérico para qualquer comportamento em desacordo com o que se "espera" de uma "mulher de bem". E que prostitutas continuem a serem reduzidas a xingamento e não tratadas com o mesmo respeito despendido a qualquer outra trabalhadora. E que alguém ainda tenha a cara-de-pau de usar a expressão "mulher de bem".

Os partidos políticos ainda estão longe de investir pesado em candidaturas de mulheres a fim de contribuir para que os parlamentos representem, realmente, a sociedade brasileira – apesar de importantes ações do Ministério Público para assegurar esse direito.

Temos duas mulheres entre os três primeiros colocados para o Planalto neste ano. Simbolicamente relevante, politicamente insuficiente. São poucas as governadoras, prefeitas, senadoras, deputadas, vereadoras. Mas também CEOs, executivas, gerentes, síndicas de condomínios. Isso sem falar das chefias de redação. E o judiciário ainda transpira machismo, haja visto as interpretações distorcidas proferidas por arautos da masculinidade de toga sobre a Lei Maria da Penha.

Nas manifestações de junho do ano passado, abordei educadamente um rapaz que carregava um cartaz chamando Dilma de "vaca". Pedi desculpas pela intromissão, mas expliquei que o protesto dele seria muito mais legítimo se ele usasse um termo para criticá-la que não fosse tão machista. Poderia questionar a ideoneidade, a competência, a capacidade para o cargo e um sem número de coisas.

Ele entendeu, ficou sem graça e disse que tinha escolhido só porque rimava com o restante da ideia.

Contudo, um senhor mais velho que o acompanhava afirmou que ela é mesmo uma "vaca". Ele disse que sabia disso porque que era professor universitário de história e havia estudado a vida de Dilma e podia atestar que ela é uma "vaca" (WTF?).

É o que eu já disse aqui antes: todos nós, homens, somos sim inimigos até que sejamos educados para o contrário. E tendo em vista a formação que tivemos, é um longo caminho até alcançarmos um mínimo de decência para com o sexo oposto.

Infelizmente, as eleições não estão sendo um bom momento para ampliar o entendimento do outro e de seus direitos. A polarização idiota interditou qualquer debate. Prova isso são os comentários que poderão ser lidos neste post, com argumentos de crianças de seis anos.

Se é assim, vamos desenhar:

"Vaca" é um bichinho que tem rabo, muge e come pasto o dia inteiro. "Mulher" é um ser humano, que fala, pensa e tem sentimentos. Não, "homem" não é o único ser humano, "mulher" também é. Só gente ruim diz que "mulher" e "vaca" são a mesma coisa. A "vaca" não se importa. Mas a "mulher" sim.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.