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Leonardo Sakamoto

Que banco terá a decência de financiar bicicletas a juro zero?

Leonardo Sakamoto

14/09/2014 09h37

Um automóvel não é apenas um veículo de transporte.

Como todo produto, traz um pacote simbólico. Quem acha que Coca-Cola, Apple ou Fiat vendem refrigerantes, tecnologia e carros, respectivamente, está enganado. Vendem estilos de vida. Do que somos. Do que gostaríamos de ser. Do que deveríamos ser – não em nossa opinião, necessariamente, mas de uma construção do que é bom e do que é ruim. Construção essa que vem, não raras vezes, de cima para baixo. Via comerciais, anúncios, propagandas.

Isso acaba contribuindo para a manutenção da divisão da sociedade em castas: os que possuem e os que não possuem carros. Para muitos, não ter veículos com motor a combustão na garagem é motivo para que sejam vistos como estranhos ou subversivos em um mundo que, estranhamente, não comporta mais tantos motores a combustão.

Uma amiga me atentou para o anúncio abaixo, que a Caixa Econômica Federal divulgou em sua conta no Twitter a fim de promover uma de suas linhas de financiamento de automóveis:

caixa

"Carona? Não, obrigado."

Por favor, não pense que tenho preconceito com carros. Eu até tenho amigos que são carros! Um Willys 1964 azul me trouxe grande felicidade por um tempo. Mas bebia demais! E, depois de levar boa parte do meu dinheiro por conta disso, deixei o jipe cair no mundo, para nunca mais voltar.

Também não estou demonizando os carros. Todos os que precisam ou querem usar automóveis devem ter esse direito, seja pela razão que for – necessidade, comodidade, conforto, status, segurança, enfim.

Mas em um momento em que as grandes cidades não comportam mais tanto transporte individual motorizado e no qual se busca investir mais no transporte coletivo, de massa ou não-poluente, é um contrassenso uma publicidade ironizando saídas solidárias que tiram carros das ruas, como a carona. As sutilezas voluntárias ou involuntárias desse tipo de publicidade acabam fazendo um marketing terrorista contra mudanças de comportamento importantes para melhorar a vida na cidade.

Enquanto isso, a realidade vai se alterando: uma pesquisa da Frontier Group e do PIRG Education Fund, usando dados da Federal Highway Administration, dos Estados Unidos e que já citei aqui mostra que o número de pessoas entre 14 e 34 anos sem carteira de motorista subiu de 21% para 26% entre 2000 e 2010. Outro estudo, da Universidade de Michigan mostrou que pessoas com menos de 30 anos são 22% de todos os motoristas – um terço a menos que em 1983, com as maiores quedas registradas entre adolescentes.

O que isso significa? Parte dos jovens norte-americanos começou a preferir meios de transporte alternativos. E não apenas pela recessão econômica que deixou as coisas turbulentas, pois mesmo os empregados e ganhando bem usam mais bicicletas e transporte público que antes. O estilo de vida de liberdade e independência sobre quatro rodas pode estar ameaçado? Talvez não no curto prazo. Mas ele já não é o único. E as pessoas e o mercado precisam compreender isso.

Não consegui encontrar uma linha no site da Caixa sobre compra de  bicicletas. Se existir, é algo que está muito bem escondido, inclusive do gerente com quem também falei. A de veículos, pelo contrário, amplamente destacada e divulgada, é essencialmente para motorizados. Hoje, quando aparece alguém querendo comprar uma bicicleta, a agência pode oferecer um crédito pessoal ou microcrédito com a melhor taxa possível.

Seria importante que a instituição, que se gaba de contribuir para a qualidade de vida do brasileiro, abrisse uma linha para financiar a compra de bicicletas sem juros. "Ah, mas algumas lojas e sites já dão financiamento a juro zero." Sim, montadoras de veículos também. Mas quero ver bancos adotarem isso como política.

Que tal revolucionar o mundo de verdade?

E não vale apenas emprestar bicicletas nas regiões mais ricas da cidade, como já fazem outros dois bancos. Políticas legais, mas que não democratizam realmente o acesso.

Parece brincadeira, mas um estudo da Tendências Consultoria aponta que a carga de imposto que incide sobre as bicicletas é proporcionalmente maior que a dos carros.

Há projetos no Congresso Nacional que questionam isso. Por exemplo, o senador Inácio Arruda (PC do B-CE) propôs a redução do Imposto sobre Produtos Industrializados para bicicletas e peças, mas a proposta foi rejeitada. Vale lembrar que o governo federal adora reduzir o IPI para automóveis, sob a justificativa de manter os empregos no setor – recursos esses que são enviados na forma de royalties ao exterior para ajudar a fechar as contas das matrizes das montadoras.

O deputado Ronaldo Caiado (DEM-GO), um conhecido esquerdista, propôs o projeto de lei 7.788/2014, que garante isenção de tributos que incidem sobre a bicicleta e equipamentos de segurança, baixando bem seu preço. O projeto também prevê a criação de  linhas especiais de financiamento para esse meio de transporte.

A Prefeitura de São Paulo usa uma pesquisa do metrô estimando que, atualmente, 0,6% das viagens diárias na cidade são feitas por esse meio de transporte. Mas afirma que há demanda reprimida e, em breve, esse número saltará para pelo menos 5% com a implementação das ciclovias. Muita gente que não é "esquerda caviar", como eu sou, não possui recursos para comprar uma bicicleta e engrossar esse caldo. O que ajudaria a desafogar o trânsito e o ar da cidade.

Ou seja, seria uma boa oportunidade da Caixa reciclar seu anúncio para algo mais sustentável: "Carona? Não, obrigado. Vou de bike".

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.