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Leonardo Sakamoto

O Coelho da Páscoa, a Bancada da Bala e o povo que fala em nome de Deus

Leonardo Sakamoto

04/04/2015 10h45

Um colega veio bege me contar uma cena surreal pela qual havia passado tempos atrás. Estava ele passeando com o seu pulguento quando, ao encontrar com uma senhora também levando o seu, puxou assunto. Ela, sem que lhe fosse perguntado absolutamente nada a respeito, afirmou que o seu au-au era ariano e não gostava de judeus.

Embasbacado, afirmou ser judeu e não compreender o comentário apenas para, na sequência, receber uma saraivada de substantivos que não merecem ser citados neste espaço por conta da presença de crianças na internet.

Sou muito fã do mantra "se não tem algo bom para falar com estranhos, fique quieto". Mas nem todos são assim e, vez ou outra, de forma surpreendente a gente é atingido por uma dessas.

Tá certo que isso é mais fácil de acontecer em comentários de blogs (não mais aqui, claro hohoho) e redes sociais por conta do anonimato que facilita o diálogo, mas também privilegia a covardia.

O interessante é que, ao se criticar uma abobrinha como essa, há quem saia em defesa dos maiores preconceitos sob a justificativa da santa liberdade de expressão.

Algumas pessoas adoram elaborar vastas teorias sobre liberdades individuais mas detém um conhecimento sobre o assunto tão rico quanto aquele que podia ser obtido nos cartões que acompanhavam o chocolate Surpresa ou nas figurinhas de chiclete Ploc (#saudade).

Por isso, não vou nem tentar explicar o porquê dos direitos humanos serem indivisíveis e interdependentes e que um tem sempre que ser olhado junto com os outros para fazer sentido. E que nenhum direito é absoluto.

Se o direito à vida fosse absoluto, não se absolveria morte por existir a legítima defesa. Ou se o direito à moradia fosse absoluto melhor seria abolir o direito à propriedade privada, quando este afeta a efetivação do primeiro, não?

(Talvez se eu colocar esse debate no porta-luva de um carro zero, no verso de um convite de balada, na embalagem de um jogo de videogame ou como merchandising de novela das 21h consiga ser entendido.)

Falar, a gente pode falar qualquer coisa. O ar aceita o aroma mais agradável de perfume ou o cheiro do ralo. Mas certas coisas que afetam a dignidade das outras pessoas, deveríamos guardar para nós mesmos.

Ponderei com o meu colega que talvez a tosca senhora em questão quisesse apenas causar para chamar a atenção e fazer-se existir – muitas pessoas em situação de rua, por exemplo, atormentam os transeuntes não por terem problemas com a sociedade, mas exatamente por terem sido excluídos dela e tentarem, com isso, deixarem sua invisibilidade.

Por que não seria o mesmo em um bairro chique?

Ou ela podia ser uma pessoa fora da casinha, vai saber…

Mas em alguns casos o problema não são as pessoas que falam sem pensar, mas aquelas que pensam muito bem antes de falar.

Por exemplo, a Bancada da Bala e grupos de deputados religiosos no Congresso Nacional que – no afã de defender a redução nos direitos alheios – parecem vindos de contos de fada. Mas só parecem.

Na minha opinião, as falas e aparições públicas de alguns deles vão ser cada vez mais bem calculadas para capitalizar o máximo de retorno junto o seu público – que acredita que homossexualidade é coisa do Nefasto e que a solução para a criminalidade é botar a criança na cadeia.

Ou seja, não é que eles acreditem exatamente em tudo o que falam mas, agora, pouco importa. Uma vez que a Câmara dos Deputados entrou em uma legislatura conservadora em costumes, agora é o momento do vale-tudo.

Particularmente, acho que a existência de Satanás entra na mesma categoria do Coelho de Páscoa e de Papai Noel. Mas, é claro, que seria muita ignorância fazer de conta que a personificação do mal não está presente, de certa forma, em praticamente todas as sociedades humanas.

E que vincular isso a grupos sociais sistematicamente excluídos diante de uma plateia de pessoas que, com o perdão da palavra, são ignorantes no assunto e são muito suscetíveis ao que dizem seus guias espirituais sobre o tema, é uma jogada política das mais rasteiras e das mais brilhantes.

Não é coisa de Zé Ninguém, como muitos gostam de afirmar. Os caras são midiaticamente bons, conseguem dar voz a um público que vive nas sombras de sua própria desinformação. E garantir, além do seu público, a sua permanência no parlamento e o aumento da representatividade de sua turma.

O problema é que isso é um desserviço sem tamanho ao país.

Sangue e lágrimas foram derramados para avançarmos, um tiquinho por vez, na efetivação da dignidade e da igualdade de direitos.

E, com a ajuda dessas presepadas em nome da segurança pública e em nome de Deus (quando, na verdade, nem um, nem outro estão realmente presentes), vamos dando saltos para trás.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.