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Leonardo Sakamoto

Não houve "confronto" no Paraná. Mas "repressão" e "violência gratuita"

Leonardo Sakamoto

30/04/2015 11h14

O uso de uma palavra nunca é aleatório. Mesmo quando conversamos informalmente com um amigo, a razão de dizermos "casa" ao invés de "lar" ou "residência", mesmo sem pensar, é um processo elaborado de nosso inconsciente que diz muito sobre quem nós somos, nossa história e nosso lugar de fala. E o que fica de fora, o que é interditado, diz mais ainda.

No jornalismo, então, a preocupação deve ser redobrada. Palavras não são apenas palavras. O processo de nomear os fatos dá cor, tom e sentido à nossa realidade e constrói a história do cotidiano.

Não se engane: a Verdade não está aí fora para ser capturada por olhos de sábios comunicadores e traduzida para o restante da população. Mas é o discurso, construído sob determinado ponto de vista, que define as "verdades".

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Ao escolher afirmar que sem-teto ou sem-terra "invadiram" e não "ocuparam" um imóvel deixado vazio pela especulação imobiliária, fazemos uma opção: que, neste contexto, significa defender o direito absoluto à propriedade e não relativizá-lo com os direitos à moradia, à alimentação ou ao trabalho decente. Todos os quatro, direitos humanos.

Da mesma forma, escolher a palavra "confronto" para narrar a ignomínia cometida sobre os manifestantes, nesta quarta (29), no centro de Curitiba, não é contar uma Verdade, mas sim fazer uma escolha – consciente, inconsciente ou guiada por manuais de redação. Escolha, ao meu ver, e com todo o respeito, equivocada.

Pois confronto pressupõe que houvesse mínima paridade entre as forças envolvidas. Pelo armamento dos policiais (bombas de fragmentação, spray de pimenta, gás lacrimogênio, balas de borracha) e a desproporcionalidade no número de feridos (seriam 20 PMs – dados do governo, portanto, a conferir, e 150 civis, de acordo com a prefeitura, que os acolheu) e na gravidade dos ferimentos (basta ver as imagens circulando na rede), a tradução do que houve está mais para "ataque policial", "violência arbitrária", "agressão gratuita", "repressão violenta".

Isso se não quiser usar "covardia", "massacre" ou "estupidez". Quiçá, "crime".

Mesmo que a polícia tivesse sido atacada primeiro, o que, ao que tudo indica, não foi o caso, ela teria que adotar métodos para permanecer calma e não revidar. Não só por estar mais armada, mas porque sua função principal não é proteger prédios públicos, ainda mais de seus reais proprietários, o povo do Paraná, mas garantir a dignidade e a integridade desse povo.

Entendo a necessidade de buscar um relato ponderado, com o maior número possível de pontos de vista, equilibrando-os. Mas é necessário ser transparente e mostrar que um dos lados apanhou e outro bateu e não que os dois estavam em condições de igualdade, como pressupõe, para muitas pessoas, "confronto".

O mundo é repleto de palavras grávidas de significados. O problema é que elas podem parir um debate público que aponte, julgue e puna os responsáveis por tanto sangue derramado ou gerar um monstro, que servirá para manter a injustiça social como amálgama que nos une e nos define.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.