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Leonardo Sakamoto

Governo discute conselho com poder de anular autuações trabalhistas

Leonardo Sakamoto

23/07/2015 16h27

O Ministério do Trabalho e Emprego vai discutir a criação de um "Conselho de Recursos" para julgar autuações por desrespeito à legislação trabalhista e notificações pelo pagamento do FGTS. A decisão para a criação do grupo de trabalho responsável por isso saiu do gabinete do ministro Manoel Dias, através da portaria 858/2015.

O que isso significa para a sua vida? Muita coisa. Dependendo da composição desse conselho, aumentam as chance de empresas responsabilizadas pela fiscalização por desrespeito aos direitos trabalhistas ou mesmo por trabalho escravo ou infantil ficarem impunes.

Na publicação "Propostas da Indústria para as Eleições 2014", a Confederação Nacional da Indústria (CNI) propõe "criar conselho de recursos administrativos no Ministério do Trabalho e Emprego, de natureza tripartite, para julgar os recursos apresentados contra decisões que imponham penalidade por infração da legislação do trabalho".

O Ministério do Trabalho e Emprego informou, através de sua assessoria de comunicação, que o grupo será instituído pela Secretaria Executiva do órgão. Mas não comentou sobre as preocupações de auditores fiscais, procuradores do trabalho e magistrados do trabalho ouvidos por esta reportagem que afirmam que a implementação do conselho pode facilitar a anulação de autuações por pressão de empregadores.

O sistema brasileiro de aplicação de multas já prevê o duplo grau de recurso e o devido processo legal. Ou seja, já há um moroso processo que garante o contraditório. Com a criação do conselho, o risco de prescrição do processo administrativo será significativo.

Uma das justificativas é que, por isonomia tributária, as empresas teriam o direito a questionar em um sistema recursal administrativo as autuações com relação à sonegação do FGTS da mesma forma que acontece com outros tributos sob responsabilidade da Receita Federal.

Contudo, as autuações dos fiscais do trabalho não dizem respeito apenas à imposição de lançamentos de débitos tributários. Há uma parte da ação, oriundo do poder de polícia administrativo, que é onde reside a polêmica. Esse conselho poderia contar com a presença de empresários e trabalhadores, partes diretamente interessadas?

O ultrapassado sistema de autuações trabalhistas brasileiro – Um sistema efetivo de aplicação de autuações está no cerne de qualquer sistema de inspeção do trabalho, pois a sanção garante a efetividade da norma trabalhista. Ou seja, punições são necessárias para as leis serem cumpridas.

E sabemos o que pode ocorrer em caso de descumprimento das leis trabalhistas: ampliação da desigualdade social, redução do poder de consumo do trabalhador, diminuição da coesão social, aumento da própria violência que se sente nas ruas, entre outros elementos.

Se vingar a proposta do empresariado, de um conselho tripartite – formado por integrantes de governo, patrões e trabalhadores, com a prerrogativa de se manter ou anular multas aplicadas por autos de infração – haverá um risco à manutenção dessas autuações.

Se as multas são impostas basicamente contra os empregadores, é razoável imaginar que esses serão contrários a qualquer aplicação de sanções por descumprimento da legislação trabalhista. Podem compor voto com governo ou com representantes de trabalhadores, que apoiem a decisão sob a justificativa de preservar uma empresa e seus empregos (e as contribuições sindicais). E inviabilizar a aplicação das multas.

Exagero? Não. Após a entrada de algumas grandes empresas da construção civil na "lista suja" do trabalho escravo, sindicalistas pediram ao Ministério do Trabalho e Emprego para que retirasse o nome delas da relação, pois os boicotes financeiros estavam colocando em risco empregos. Na época em que isso aconteceu, o nome não saiu por conta dessa pressão. Mas gerou um retrato do quanto se pode confiar em alguns sindicatos e federações para a garantia da dignidade do trabalhador.

Vale lembrar que o tripartismo não pode ser utilizado em todas as políticas públicas executadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego sob pena de paralisar a própria administração pública. O tripartismo é um importante mecanismo apenas e tão somente de consulta e aconselhamento do administrador, mas jamais de controle da atividade de polícia administrativa.

Se o governo federal quiser mesmo melhorar a efetividade de nosso sistema de multas e garantir uma maior segurança jurídica para o cidadão e para o empregador deveria considerar mudar outros aspectos desse e não criar instância que vão contribuir para tornar multas sem efetividade.

O sistema brasileiro de aplicação de multas administrativas é defasado, assimétrico e pouco efetivo. A Organização Internacional do Trabalho, por exemplo, vem incentivando há anos os Estados-Membros a implementarem sistemas que graduem as infrações segundo sua natureza em muito graves, graves, médias e leves. Essa graduação deve ser estabelecida pelo Legislativo e executada com parcimônia, equilíbrio e uma certa dose de discricionariedade pelos agentes públicos. Auditores-fiscais, no caso brasileiro.

Contudo, não é isso o que ocorre, fazendo com que diversas assimetrias e injustiças ocorram. Há multas extremamente baixas para infrações potencialmente muito graves (de acordo com o juízo médio de qualquer cidadão), enquanto há multas muito altas para infrações que poderiam bem ser consideradas leves relacionadas com obrigações secundárias.

Isso sem contar que nosso sistema está defasado quanto aos valores das multas, muito baixos, que não inibem irregularidades. Pelo contrário, nos orçamentos anuais das empresas já estão previstos os desembolsos com multas. Muitas preferem isso a se adaptar, pois sairia mais caro.

Golpe na inspeção do trabalho? – Auditores fiscais, procuradores e magistrados do trabalho ouvidos por este blog, e que preferiram não se identificar, afirmam que a criação de uma junta tripartite poderia ser a derradeira manobra para selar com a morte de vez a inspeção do trabalho brasileira.

Em momentos de crise econômica também aumenta a animosidade contra o poder público por conta da ação dos auditores fiscais, incumbidos de manter as relações trabalhistas dentro das regras. Ao passo de governantes se verem como vítimas "desses auditores abusados e pouco flexíveis". Já ouvi coisas piores nos corredores de Brasília. Daí para tomar medidas a fim de "resolver" o "problema" é tentador.

Por isso, apesar de ser um assunto bem técnico, vale a pena acompanhar a discussão sobre essa comissão. Qual seria o modelo proposto? Será tripartite como querem os empregadores? Mexeria em casos de trabalho escravo ou infantil? Como seriam preenchidas as vagas tanto de patrões quanto de empregados? Por eleição ou indicação?

Lembrando que, caso o Brasil venha a adotar qualquer sistema que possa por em risco a efetividade das multas trabalhistas, ele pode ser denunciado por descumprir a convenção número 81 da Organização Internacional do Trabalho, que trata da inspeção do trabalho.

A notícia boa é de que, após os trabalhos da comissão que vai discutir a criação desse conselho, uma proposta tem que passar pelo Congresso Nacional. Pois é necessário mudar a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) para que ela passe a valer.

A má notícia é que isso precisa de maioria simples nas duas casas para ser aprovada, mais sanção presidencial. E considerando o Congresso que esta aí – que se preocupa mais com doadores de campanha – e um governo que rifa direitos trabalhistas se considerar necessário, são esperadas fortes emoções.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.