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Leonardo Sakamoto

Temer reclamar de tentativa de golpe é surreal

Leonardo Sakamoto

26/04/2016 16h27

Logo após ler "Michel Temer chama de 'golpe' ideia de antecipar eleição presidencial para 2016", manchete do UOL no início da tarde desta terça (26), todos meus pensamentos e sentimentos foram sugados. Fiquei prostrado na frente do computador.

Não conseguia me mexer. Não sentia meus braços ou pernas, não sentia sede, nem fome, nem cheiros. Perdi a capacidade de perceber texturas. Aquele momento era o alfa e o ômega, o início e o fim de tudo. Flutuando acima do meu corpo, eu via tudo e todos, conseguia ouvir cada pensamento dos semoventes que habitam esse planeta. E, naquele momento, toda falta de sentido da vida fez todo o sentido do mundo. Então, fiz a única coisa possível: entreguei minha alma ao diabo, a fim de honrar compromissos previamente acertados, e esperei pela chegada do meteoro redentor. Mas o meteoro não veio.

Você pode achar que Dilma Rousseff faz um péssimo mandato e é responsável pela terrível situação econômica do país, como eu acho. E pode ser contra ou a favor do impeachment, o que pouco importa para o debate deste post.

Mas se acompanha a política nacional sabe que a articulação conduzida pelo vice Michel Temer para a destituição da presidente do seu cargo, com a ajuda de Eduardo Cunha e do que há de mais bizarro no Congresso Nacional, tem rabo, orelha e focinho de conspiração. Afinal, um vice deveria ficar no seu canto, como fez Itamar Franco na época de Collor, e esperar, em silêncio, o desfecho. E não trabalhar abertamente para ficar com o Palácio do Planalto.

Agora, quando a discussão sobre a viabilidade ou constitucionalidade de nova eleições presidenciais é feita por setores da sociedade, incluindo grupos pró e anti impeachment, como uma forma de termos um governo com legitimidade, Michel chama isso de golpe. Não por conta de preservar as instituições, mas pelo mandato que vai conquistar. Independentemente se você concorda ou não com novas eleições, vai perceber o quanto isso soa como casuístico.

Entendo que este é um momento em que PT e PMDB vão tentar disputar as narrativas. Não para a votação no Senado, que está virtualmente perdida para Dilma, mas para o dia seguinte. O problema é que ambos estão construindo narrativas para o seu próprio interesse político e eleitoral, esquecendo que o Brasil precisa de uma que ajude a garantir as conquistas sociais e trabalhistas e a avançar nos direitos fundamentais independentemente do partido que esteja no poder.

Eu gosto de cinismo. Mas ele é feito sal. Usado com comedimento, ajuda a temperar a vida. Em demasia, estraga tudo. E uma overdose dele pode matar.

A matéria de Gustavo Uribe, da Folha de S.Paulo, que trouxe a declaração, diz que Michel afirmou que nos Estados Unidos "as pessoas ficariam coradas" diante dessa proposta. Na minha opinião, pouco importa o que acham os EUA sobre o assunto. Ele tem que se preocupar com o que acha a população de seu próprio país. Mas se quiser caminhar por essa linha de raciocínio, devolvo a pergunta: E diante de um vice que articula a deposição do presidente, como nossos vizinhos do Norte ficariam?

dali

Há quadros de Salvador Dalí menos surreais.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.