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Leonardo Sakamoto

O governo Temer escolhe o inimigo: os direitos adquiridos pelos mais pobres

Leonardo Sakamoto

17/05/2016 09h03

Relendo e revendo entrevistas concedidas por ministros do governo Michel, há um elemento em comum que salta aos olhos: questionar os direitos sociais.

Ou seja, deixar claro que aquilo que foi conquistado a suor e sangue, muitas vezes através de décadas de lutas e reivindicações, e que representa um patamar mínimo de garantia de dignidade e de civilidade pode ser revisto diante de outras prioridades elencadas pelo novo governo e por quem o colocou lá.

Lembrando que a população mais pobre não foi às ruas para defender ou criticar o impeachment de Dilma Rousseff. De acordo com o instituto Datafolha, o perfil dos manifestantes era bem mais rico e escolarizado do que a média da população. Os mais pobres assistiram a tudo bestializados. Insatisfeitos com o governo, mas descrentes do que poderia vir a seguir, muitos consideraram aquilo como uma disputa da elite com a elite.

Agora, se o discurso sobre a necessidade de rever direitos do governo Michel se tornar realidade, é essa população mais pobre quem mais vai sentir a lâmina porque é quem depende do Estado.

Em comum nas falas de ministros, a justificativa é a mesma: não há dinheiro em caixa.

O que não é nenhuma novidade porque o orçamento do país sempre foi menor do que as demandas. Daí entra a política, que é a arte de acomodar diferentes anseios que coexistem no mesmo espaço. O problema é quando a política, sequestrada por grupos com interesses não-republicanos, quer transformar o país em um cartório de seus interesses imediatos. Foi assim com PSDB e PT, mas com o PMDB o fisiologismo e o pragmatismo prometem ser maiores até pelo histórico do partido.

E como não há dinheiro em caixa, é dado ao povo uma escolha: ou aceita a revisão de seus direitos, diminuindo seu alcance e efetividade, ou fica sem nada. Uma chantagem lustrada com óleo de peroba para ficar menos áspera e reluzente.

Por exemplo, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles.

Em seu primeiro pronunciamento, na sexta (13), disse: "a ideia é que se respeitem direitos claramente adquiridos, embora seja importante dizer que direitos adquiridos não prevalecem sobre a Constituição".

No dia anterior, Michel havia dito, em seu primeiro pronunciamento, que "nenhuma das reformas alterará os direitos adquiridos pelos cidadãos brasileiros".

Ou seja, vamos torturar a língua portuguesa até que ela não aguente mais e aceite que a inclusão de "claramente" na frase restringe a ideia de "direito adquirido" a quem já está aposentado. Os milhões trabalhadores na ativa que, há anos, contribuem com o INSS porque acreditaram quando o Estado lhe mostrou as regras do jogo, estariam fora dessa definição.

Será que para a novilíngua michelesca as regras do jogo podem ser mudadas durante a partida?

E Meirelles solta a chantagem:

"O importante é preservar o maior direito, que é receber a aposentadoria." Ou seja, se quiser manter as coisas como estão hoje, eu não garanto nada…

Que a Previdência Social precisa de uma revisão, isso é claro – afinal, o país vive mais e envelheceu. Mas isso deve ser feito com muito diálogo e não empurrado com ameaças veladas. Porque estamos falando de um grupo social que não conta com previdência privada, nem fundo de investimento para a velhice. E que por começar a trabalhar mais cedo que a elite, até para servi-la, tem o direito a descansar quando for de direito.

Isso sem contar que o governo está analisando desvincular o aumento do salário mínimo dos trabalhadores da ativa do reajuste daqueles que recebem o mínimo e estão aposentados. Considerando que há famílias que dependem desse recurso para comer e vestir filhos e netos, que grassam em subempregos, imagina-se o borogodó.

O ministro da Saúde, Ricardo Barros (PP-PR), ao ser questionado por Claudia Collucci, da Folha de S.Paulo (que, especialista na área, entende muito mais do riscado que ele), sobre o fato da Constituição de 1988 afirmar que a saúde é um direito universal, cravou em entrevista:

"A Constituição cidadã, quando o Sarney sancionou, o que ele falou? Que o Brasil iria ficar ingovernável. Por quê? Porque só tem direitos lá, não tem deveres. Nós não vamos conseguir sustentar o nível de direitos que a Constituição determina. Em um determinado momento, vamos ter que repactuar, como aconteceu na Grécia, que cortou as aposentadorias, e outros países que tiveram que repactuar as obrigações do Estado porque ele não tinha mais capacidade de sustentá-las. Não adianta lutar por direitos que não poderão ser entregues pelo Estado. Temos que chegar ao ponto do equilíbrio entre o que o Estado tem condições de suprir e o que o cidadão tem direito de receber."

O detalhe da sutil chantagem: "Porque só tem direitos lá, não tem deveres." Além de tudo, é um ministro piadista. Quem vai ser seu secretário-executivo? Seinfeld?

Rever o Sistema Único de Saúde e o acesso universal no país, ao invés de colocá-lo para funcionar devidamente, terá impactos que não conseguimos imaginar. Apesar das longas filas e da falta de recursos, uma pessoa sem um centavo na conta bancária ainda consegue fazer uma cirurgia de alta complexidade e depois contar com medicamentos caríssimos sem ter que desembolsar nada. Para quem tem um bom plano de saúde, isso não significa nada. Para a maioria dos brasileiros, significa tudo.

"Não estamos em um nível de desenvolvimento econômico que nos permita garantir esses direitos por conta do Estado" afirma também. Ou seja, a ralé faz o sacrifício e entrega os poucos recursos usados para a garantia precária de sua saúde para que o governo faça o país crescer. E, quando formos uma nação rikah com bom "nível de desenvolvimento econômico", tudo será dividido com a população mais pobre?

Na ditadura civil-militar, pelo menos se usava fábulas com bolos que crescem para ser divididos. O governo Michel, pelo jeito, vai goela abaixo sem um docinho para o gosto amargo que ficará na boca.

Por conta da repercussão negativa de seu depoimento, Ricardo Barros voltou atrás. Mas o estrago já havia sido feito. E está clara a opinião do novo ministro sobre as melhores soluções para a área que vai coordenar.

É por falar em direitos, o ministro da Justiça e Cidadania, Alexandre de Moraes, ex-secretário de Segurança Pública de São Paulo, afirmou que "nenhum direito é absoluto", em entrevista à Monica Bergamo, também na Folha de S.Paulo, para justificar a ação contra manifestações.

O que é verdade, nem o direito à vida é absoluto – se fosse, mortes oriundas de legítima defesa seriam punidas como homicídios. Nem a liberdade de expressão pode ser absoluta, quem conflagra violência a uma minoria através de discursos de ódio, por exemplo, pode ser responsabilizado por isso. Os direitos fundamentais devem ser entendidos como uma colcha de retalhos, interdependentes, interconectados, que precisam uns dos outros para fazer sentido e no qual o limite de um é dado pelo começo de outro.

Esses limites não devem vir da cabeça de um presidente, de um governador, de um ministro, mas sim da lei e da jurisprudência. Por exemplo, a
polícia não pode retirar à força estudantes que protestam em escolas públicas sem determinação judicial, como ele mesmo ordenou como secretário. O ministro usou o argumento do direito absoluto não para defender os direitos da população, mas para sustentar que é o poder público quem decide o que é e o que não é um direito.

"Qual é o limite entre o direito de manifestação e a repressão a organizações que não estão se manifestando? É a prática de crime. Não importa se o movimento é de direita, de esquerda, de centro, liberal, conservador, para usar terminologias antigas. Todos têm direito de se manifestar. Absolutamente todos", afirmou. O problema é que uns fazem selfie com a polícia e outros levam borrachada, bombas de gás e tiros de borracha. Ou seja, todos têm direito a se manifestar – desde que seja da forma que o poder público considerar como válida.

E quando o poder público é ele mesmo quem fere os direitos civis durante uma manifestação? E quando é o poder público que ataca direitos sociais? Reclamamos com quem? Com o papa?

Se um governo diz que não consegue cumprir os direitos básicos previstos pela Constituição Federal, por que não pede para sair ao invés de piorar o que já está ruim? Que tal convocar novas eleições e deixar o povo escolher se quer realmente abrir mão de seus "direitos adquiridos" em nome de uma visão questionável de "progresso"?

Atualizado às 14h do dia 17/5/16 para inclusão do novo posicionamento do ministro da Saúde.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.