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Leonardo Sakamoto

A estética manda na ética em uma SP com nojo de pessoas em situação de rua

Leonardo Sakamoto

22/07/2017 20h11

Pessoa em situação de rua e arte urbana, inimigos de políticas higienistas. Foto: Hélvio Romero (https://helvioromero.wordpress.com)

Após a capital paulista ter registrado a madrugada mais fria do ano até então, equipes municipais lavaram a Praça da Sé com jatos de água, molhando as pessoas em situação de rua que dormiam por lá, além de seus cobertores e pertences nesta quarta (19). Diante de denúncia da rádio CBN, João Doria negou o ocorrido, disse que houve um "descuido" da ação de limpeza e atacou, nas redes sociais, a repórter que noticiou primeiramente o fato. Daí, redes de apoio ao prefeito na internet atiçaram ódio contra a jornalista.

Claro que não há uma política municipal voltada a torturar pessoas em situação de rua com água fria. Mas, não raro, a administração sobrepõe as preocupações estéticas aos princípios éticos no trato com a coisa pública. E, portanto, a zeladoria de um lugar se torna mais relevante do que o cuidado com os cidadãos mais vulneráveis que lá estão. Assumir as falhas na gestão seria o primeiro passo. Mas, convenhamos, políticos que reconheçam problemas, peçam desculpas sem usar um "mas" ou um "porém" e, a partir daí, proponham diálogos voltados à mudança são coisas raras por aqui. À direita e à esquerda. É mais fácil chamar uma repórter de mentirosa do que apresentar fatos.

A questão da população em situação de rua é complexa e vai de ações emergenciais, para garantia de sua dignidade, às de longo prazo, voltadas a construir junto com as pessoas a sua reinclusão. Mas certamente nossos governantes têm errado na adoção de medidas. Postei críticas às ações da administração Haddad quando essa não garantia a dignidade da população em situação de rua. E tenho feito o mesmo vale para a gestão Doria.

Em janeiro, Doria retirou o veto que proibia a remoção de cobertores, mantas, travesseiros, colchões, papelões de pessoas em situação de rua em São Paulo. A proibição havia sido adotada por Fernando Haddad após ele sofrer duras críticas por conta da remoção de "itens portáteis de sobrevivência" pela Guarda Civil Metropolitana durante o frio de junho do ano passado. Criticado pela decisão, João Doria restituiu o veto à remoção de cobertores no final de maio.

padre Júlio Lancelotti, da Pastoral do Povo de Rua, afirmou, contudo, que o rapa tem sido inclemente, ou seja, agentes públicos têm retirado pertences em pleno frio.

Esse blog criou, já há algum tempo, o "Regras para Convívio Social com a População em Situação de Rua – Um guia fácil para uma cidade melhor", reunindo as piores ações já adotadas no país no intuito de segregar as grandes cidades. O uso do jato de água em dias frios é uma inovação que não estava no guia, então foi devidamente incluída. Ele segue, abaixo, atualizado.

A maior parte das "regras" não foi retirada de ações do poder público, mas dos próprios cidadãos. Uma população com tanto medo de si mesma que acaba por ignorar as leis e se guiar pelo impossível: buscar a paz promovendo a guerra. O que me lembra sempre de Oscar Wilde: "Há três tipos de déspotas. Aquele que tiraniza o corpo, aquele que tiraniza a alma e o que tiraniza, ao mesmo tempo, o corpo e a alma. O primeiro é chamado de príncipe. O segundo de papa. O terceiro de povo".

Por favor, cuidado: ironia e sarcasmo a seguir:

1) É permitida a utilização de fogo com o objetivo de limpar áreas públicas de pessoas em situação de rua.

1.1) Considerando que o álcool vendido no varejo não queima como o de antigamente, recomenda-se o uso de gasolina, etanol, diesel ou querosene.

1.2) O uso do fogo como instrumento de limpeza social deve se atentar para o risco de atingir veículos automotores em vias públicas. Nesse caso, os infratores serão responsabilizados com todo o rigor da lei. Carros são importantes, gente, não.

2) Áreas cobertas em viadutos, pontes, túneis ou quaisquer locais públicos que possam acolher população em situação de rua devem ser preenchidas com concreto ou gradeadas, evitando assim a criação de nichos ou casulos de maltrapilhos prontos para assaltar o cidadão de bem.

2.1) Em caso de uso de concreto para preencher esses espaços, lembre-se que a face superiora da concretagem não deve ficar paralela à rua, mas com inclinação suficiente para que um corpo sem-teto nela estendido e prostrado de cansaço e sono role feito um pacote de carne velha até o chão.

2.2) Outra opção, caso seja impossível uma inclinação acentuada, é o uso de floreiras, cacos de vidro, lanças de metal ou cactos. É menos discreto, mas tem o mesmo resultado.

2.3) Se o pessoal dos "direitos humanos" reclamar e/ou houver pressa para a solução do problema, a implementação de tapumes escondendo as pessoas em situação para os motoristas funciona como um alento provisório. Afinal, o que os olhos não veem, o coração não sente.

3) Prédios novos devem ser construídos sem marquises para impossibilitar o acúmulo de sem-teto ou de supostos marginais em noites frias e/ou chuvosas.

3.1) Caso seja impossível por determinações estéticas do arquiteto, a alternativa é murar o edifício ou cercá-lo de grades ou placas de acrílico. A colocação de seguranças armados é outra possibilidade, caso haja recursos para tanto.

3.2) Em caso de prédios mais antigos, uma saída encontrada por um edifício na região central de São Paulo e que pode ser tomada como modelo é a colocação de uma mangueira furada no teto, emulando a função de sprinklers. Acionada de tempos em tempos, expulsa desocupados e usuários de drogas. Além disso, como deixa o chão da calçada constantemente molhado, espanta também possíveis moradores de rua que queiram tirar uma soneca por lá.

4) Bancos de praça devem receber estruturas que os separem em três ou quatro assentos independentes. Apesar disso impossibilitar a vida de casais apaixonados ou de reencontros de amigos distantes, fará com que sem-teto não durmam nesses aparelhos públicos, atrapalhando a real função de um banco, é enfeitar a praça.

5) Em regiões com alta incidência de seres indesejáveis, recomenda-se o avanço de grades e muros para além do limite registrado na prefeitura, diminuindo ao máximo o tamanho da calçada. Como é uma questão de segurança, um fiscal municipal que discordar da situação pode "se fazer entender" da importância de manter esse avanço irregular através de um mimo.

6) Cloro deve ser lançado nos locais de permanência de sem-teto para garantir que eles se espalhem. Caso não seja suficiente, pode ser necessária a utilização de produtos químicos mais fortes vendidos em lojas do ramo, como vem fazendo algumas lojas no Centro da cidade. A sugestão é o uso de um aspersor conforme o item 3.2, mas instalado no chão.

7) Apoiar propostas legislativas, como a retirada compulsória de seres indesejáveis dos espaços públicos ou mesmo a flexibilização da legislação vigente, permitindo ações preventivas de uso da força contra pessoas em situação de rua que se aproximem de automóveis de cidadãos de bem em semáforos fechados.

7.1) Uma revisão das cláusulas pétreas na Constituição, relacionadas a direitos fundamentais e que atrapalham o aprofundamento da limpeza social na cidade, também se faz preciso. Especial atenção ao subversivo "direito de ir e vir".

8) Apoiar incondicionalmente a ação de prefeituras quando elas retiram cobertores e papelões que servem para proteger os seres indesejáveis nas noites e madrugadas frias.

8.1) A justificativa é de que essa ocupação irregular de poucos metros quadrados privatiza o espaço público e torna a cidade mais feia, o que é inaceitável. A privatização do espaço público e a imposição de violência estética só devem ser permitidas quando feitas por importantes empresas, grandes clubes, luxuosos condomínios e honoráveis cidadãos. Porque, afinal de contas, a cidade pertence a eles.

9) Albergues públicos devem ser garantidos em número bem inferior à quantidade de seres indesejáveis em cada bairro. Dessa forma, ou eles congelam e morrem do lado de fora ou fogem para outro lugar. Não importa, de qualquer jeito, o problema se resolve.

10) Se a limpeza de espaços públicos com o uso de jatos de água atingir, por "descuido", pessoas que dormem no chão, terá a espantosa propriedade de fazer com que eles desapareçam em dias muito frios.

Caso seja questionada a aplicação de qualquer uma das medidas acima apresentadas, responda com a argumentação desenvolvida há décadas por quem não entende o real papel do Estado em uma república democrática: "Tá com dó? Leva para casa".

(Agora, me digam: não é assustador que parte das pessoas que leram este post irá considerar tudo isso boa ideia?)

 

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.