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Leonardo Sakamoto

A ovada em João Doria e a grande casca que precisa ser quebrada no Brasil

Leonardo Sakamoto

08/08/2017 11h29

Os prefeitos de São Paulo, João Doria, e de Salvador, ACM Neto, levaram uma ovada de manifestantes na capital baiana, na noite desta segunda (7) e as imagens ganharam o mundo. Entendo a indignação popular, mas não concordo com esse tipo de ataque.

E não é desapreço pelo ovo – que, na minha humilde opinião, deveria ter sido saudado no lugar da mandioca. Ovo é vida, já dizia a cartilha que nos alfabetizou, o que, claramente, é muito mais importante do que saber que vovó viu a uva.

Mas da mesma forma que poder público não pode agredir manifestante, também não se justifica o contrário. Lembrando das ovadas que levei nos aniversários da infância, nos quais me sentia a Geni da omelete, posso atestar a força de um ovo bem arremessado. Mas mesmo se não doesse. Esse tipo de agressão fere mais do que a testa de alguém, atinge em cheio princípios democráticos e republicanos. E quem não segue princípios, não raro, se iguala àqueles que quer combater.

A diferença, claro, é que seria ótimo se a polícia paulista, comandada pelo arqui-inimigo de Doria, Geraldo Alckmin, lançasse ovos ao invés de bombas de gás, balas de borracha e spray de pimenta. Porque ovo não cega, nem mata. Pondera-se, contudo, que, obrigada a usar ovos no lugar de armas, não duvido que petardos com salmonela seriam jogados como arma biológica em protestos que não trajassem camisas da CBF dada a inventividade do poder público bandeirante.

O problema é que qualquer tentativa de elevar a qualidade do debate público (afinal, quem acha que está derrubando uma Bastilha ao escrachar políticos dessa forma faltou às aulas de História) é interditada quando o discurso do próprio João Doria se mostra mais raso do que uma ovada. Em uma generalização tosca, brada que esse é o caminho das esquerdas e dá um jeito de incluir Maduro e a Venezuela no meio para fazer a alegria do algoritmo de suas redes sociais.

Quando separamos a sociedade em dois grupos (o nós e o eles), reduzindo a capacidade de sentir empatia pelo outro e, portanto, de entender que ele deve ter acesso à efetivação dos mesmos direitos que demandamos para nós, alimentamos um processo de desumanização do qual não tem como sair nada de bom. Uma coisa é o prefeito reclamar de uma blitzkrieg com ovos – um político com jogo de cintura se sairia bem dessa sem apelar. Outra é aproveitar o ocorrido para culpar todos aqueles que ele elegeu como inimigos, fomentando a segregação.

Nesse sentido, Doria vai contra o que Michel Temer, seu melhor-amigo-paulista-desde-que-o-PSDB-alckmista-abandonou-a-base-do-governo-federal, afirmou, horas antes, em um evento em São Paulo: "Jamais vi o João dividindo pessoas. Ao contrário, ele sempre agregou, sempre somou. Porque é inadmissível que brasileiros se joguem contra brasileiros. A história do 'nós contra eles', não pode prevalecer". O que leva a crer que o ocupante da Presidência da República gosta de uma figura de linguagem. Como a ironia. Ou o cinismo.

Claro que esse comportamento político não é monopólio de uma única pessoa, mas está aí, na praça, desde os tempos tribais. Fomentar o "nós contra eles", sem considerar matizes e gradações, é instrumento usado à exaustão por políticos da extrema direita, direita, centro, esquerda, extrema esquerda, menos para atacar os adversários e mais para fortalecer uma identidade comum de seu próprio grupo. Uma identidade forjada de forma reativa, como anti-qualquer coisa, que não leva a sociedade para um lugar melhor, mas é eficaz para manter o controle.

Não estou sugerindo para ninguém ir à rua, dar um abraço gostoso em seu adversário político e convidá-lo para assistir o próximo episódio de Game of Thrones e, juntos, torcerem pela saúde do dragão. Apenas lembrando que quem ganha com esse divisionismo de caráter eleitoreiro não é a população. Se não fosse a extrema polarização, todos veriam que a rejeição ao governo Temer e à Reforma da Previdência, por exemplo, une coxinhas e mortadelas em um objetivo comum. E se olhassem com lupa o que está acontecendo com os direitos de muita gente pelas mãos do Congresso Nacional veriam que o inimigo é outro.

Dizem que não se faz omelete sem quebrar alguns ovos. Pois a principal casca que precisa ser quebrada, hoje, é esse muro que impede que um grupo veja o outro em sua totalidade e em sua humanidade. Aumentando, assim, o foco para além daquilo que seus líderes querem que eles vejam. Reduzindo o ódio e aumentando o diálogo. Isso mudaria um país.

E, talvez, seja essa a razão que tanta gente poderosa torça o nariz só de ouvir falar disso.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.