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Leonardo Sakamoto

Governo desiste de taxar ricos e crise continuará sendo paga pelos pobres

Leonardo Sakamoto

09/08/2017 09h24

Rodrigo Maia e Michel Temer. Foto: Beto Barata/PR

Tenho dificuldade em entender por que o governo posterga algumas medidas que há muito deveriam ser tomadas. Por exemplo, a inclusão do termo "otário" ou "otária", em vermelho vivo, bem visível, em RGs e carteiras de motorista de trabalhadores das classes média e baixa. Com a devida identificação de como o Estado os veem, não haveria constrangimento algum quando o poder público e os mais ricos resolvessem passar a mão em suas bundas em público – sem consentimento, claro.

Bastou a área econômica assumir que estava estudando a hipótese de sei lá, talvez, quiçá, aumentar o Imposto de Renda sobre profissionais que ganham mais de R$ 20 mil por mês, criando uma nova alíquota de 35%, para que uma enxurrada de críticas do mercado financeiro e do Congresso Nacional surgissem contra essa abominação.

A grita foi ainda maior, a bem da verdade, porque também já estava sendo estudado o retorno da taxação de dividendos recebidos de empresas por pessoas físicas, algo em torno de 12 a 15%. O Brasil é um dos únicos países desenvolvidos ou em desenvolvimento em que isso não acontece, fazendo com que as camadas mais altas que vivem de lucros paguem, proporcionalmente, menos impostos que os mais pobres. A medida teria que vir junto com a nova alíquota do IR para evitar uma corrida à pejotização dos profissionais de mais alta renda.

Isso era um bom ponto de partida para um debate público. A faixa de R$ 20 mil é muito baixa para uma alíquota de 35%? Vejamos os números para discutir algo mais factível, como R$ 30 mil ou R$ 40 mil. Mas o tema foi interditado sumariamente.

Ou seja, os mais ricos e seus representantes políticos enviaram um lembrete ao governo: a conta da crise econômica, conforme o combinado quando colocamos vocês aí, é para sair apenas do bolso dos mais pobres e não mexer em nossos privilégios.

"Se tiver que passar pela Câmara, não passa", avisou o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ).

Não dá nem para dizer que isso é hipocrisia porque a maior parte da Câmara não esconde suas preferências ou não tem medo de atender ao desejo de seus patrocinadores. Os deputados federais aprovaram, sem pudores, a PEC do Teto dos Gastos, que limita pelas próximas duas décadas investimentos em gastos, como educação, saúde, reduzindo a qualidade de vida da turma pobre que depende de serviços públicos. Aprovou uma Lei da Terceirização Ampla, que deve precarizar o mercado de trabalho, e uma Reforma Trabalhista que retira proteção à saúde e à segurança dos mais vulneráveis. E está passando um rosário de leis que ferem a dignidade de populações indígenas, ribeirinhas, quilombolas, entre outros grupos. Sem contar que Rodrigo Maia quer aprovar o aumento de 15 para 25 anos de contribuição mínima para se alcançar a aposentadoria, o que atinge diretamente os mais pobres.

A mesma Câmara dos Deputados se esforça para manter subsídios bilionários a setores empresariais e prepara um perdão multibilionário de até 99% dos juros e multas que deveriam ser pagos por devedores de impostos.

Medidas de justiça social não resolvem o problema de caixa no país, o que só deve acontecer com crescimento econômico. Mas, pelo menos, o chicote, que hoje estala na grande maioria dos trabalhadores também seria sentido no lombo dos mais ricos. Com isso, teríamos menos vergonha de dizer lá fora que somos uma democracia.

Os estudos conduzidos pelo governo são pertinentes e merecem apoio da sociedade. Se a alta do IR para os mais ricos e o retorno da taxação de dividendos fossem implantados, Michel Temer faria algo que seus antecessores não conseguiram no sentido de tornar mais justo o sistema tributário brasileiro.

Infelizmente, a relação entre o Poder Executivo e o Congresso Nacional e a parcela mais rica da sociedade segue gerando uma espécie de Robin Hood às avessas: o sistema tira dos pobres para garantir aos ricos. Enquanto um sócio de empresa recebe boa parte de sua renda de forma isenta, um metalúrgico e uma engenheira contratados via CLT são obrigados a bancar alíquotas de até 27,5% por salários que mal pagam um plano de saúde privado ou a escola particular dos filhos.

A falta de uma correção decente da tabela do Imposto de Renda também passou da hora de acontecer. Uma opção que vinha sendo discutida por técnicos do governo e por membros da oposição no Congresso era elevar a isenção para rendimentos de até R$ 5 ou 8 mil mensais e começar a taxar a partir daí, criando alíquotas de 30%, 35% e 40% para rendas muito altas. Isso liberaria recursos dos trabalhadores para o consumo e, ao mesmo tempo, apontaria para uma progressão tributária mais justa.

Esses elementos sempre esbarram na justificativa de que os mais ricos tirariam o dinheiro do país. Isso só aconteceria se tivermos um governo que se mantenha subserviente aos interesses de sua elite econômica, pois uma administração que pensa primeiro no bem público desenvolve instrumentos para não deixar isso acontecer. E, acontecendo, consiga punir os responsáveis. E não possibilite perdões para o repatriamento de dinheiro ilegal.

Quando o governo Michel Temer ensaiou equilibrar a balança, o próximo na linha sucessória bateu o pé e soltou um nem que a vaca tussa. Como precisa do apoio do grande empresariado e do mercado para não ser trocado por Rodrigo Maia, a solução é pedir desculpas, dizer que os estudos foram apenas rabiscos aleatórios e deixar tudo como está.

Você, trabalhador de classe média ou baixa, caso sinta uma apalpada nas nádegas logo após uma chicotada no lombo, não estranhe. É sua cota de sacrifício pelo desenvolvimento do Brasil. Seguido de um lembrete de que este país tem dono. E, definitivamente, não é você.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.