Topo

Leonardo Sakamoto

Rafael Braga deu azar. Se fosse afilhado de Gilmar Mendes, estaria livre

Leonardo Sakamoto

23/08/2017 16h57

Foto: Marlene Bergamo/Folhapress

Já que o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes está com cãibra na mão, assinando a soltura de acusados de corrupção, como Jacob Barata Filho, sem se importar que a população ache estranho ele ter sido o padrinho de casamento da filha do "Rei do Ônibus", bem que ele podia intervir e dar um jeito de tirar Rafael Braga da prisão.

Preso durante as manifestações de junho de 2013 pela acusação de portar artefato explosivo (ele carregava água sanitária e Pinho Sol), Rafael foi condenado e depois liberado para cumprir prisão domiciliar. Mas foi preso novamente, acusado de envolvimento com o tráfico de drogas. Segundo a polícia, carregava 0,6 g de maconha e 9,3 de cocaína e um rojão – o que ele nega, afirmando que o flagrante foi forjado.

Mesmo assim, com base na palavra dos policiais e sem outras evidências, foi condenado a 11 anos e três meses de prisão. A 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro negou habeas corpus para que ele respondesse em liberdade.

Rafael chegou a ser internado na Unidade de Pronto Atendimento de Bangu com suspeita de tuberculose na última quinta (17). Segundo advogados do Instituto de Defesa dos Direitos Humanos, ele havia se queixado de uma tosse persistente que não teria sido tratada. Um novo pedido de habeas corpus deve ser decidido pelo Superior Tribunal de Justiça.

Mas Gilmar Mendes, que é um faz-tudo da República, poderia adiantar e dizer que matava essa no peito também se o STJ negar. Afinal, o ministro aconselha Michel Temer a qualquer hora da noite, sugere formas de aprovação de reformas no Congresso Nacional, pratica política a céu aberto, é advogado de defesa, promotor, júri e magistrado, dependendo do envolvido e da situação, e consegue até ser "sorteado" para cuidar de casos envolvendo o senador tucano Aécio Neves, próximo a ele. Gilmar poderia dar um toque ao pessoal no STJ ou dizer que se o caso bater no Supremo, ele garante ser "sorteado" para garantir um habeas corpus.

O problema é que Rafael Braga é negro, pobre e favelado, o tipo de gente que o sistema jucidiário brasileiro não gosta muito.

A Operação Ponto Final, um desdobramento da Lava Jato, envolvendo Jacob Barata, apura o pagamento R$ 260 milhões em propina entre 2010 e 2016 de empresários a políticos e funcionários de áreas de fiscalização ligadas ao setor de transportes.

Que a Justiça tem pesos diferentes a depender da classe social, tamanho da conta bancária, cor de pele, origem étnica, idade, gênero e orientação sexual dos envolvidos não é novidade. Mas o contraste continua chocando. Esse é o tipo de coisa com a qual a gente não se acostuma.

Qualquer pessoa, rica ou pobre, deveria ter todo o direito à ampla defesa. E uma condenação deveria contar com provas sólidas, caso contrário, não é Justiça. E a privação de liberdade deve ser usada apenas como último recurso, quando o crime cometido é grave o suficiente para impossibilitar a pessoa no convívio em sociedade.

Mas quando um jovem negro e pobre segue preso pela acusação inconsistente de porte de alguns gramas de drogas, enquanto um milionário consegue dois habeas corpus de Gilmar Mendes no prazo de 24 horas a pergunta que fica é: o que, além da porrada por parte da polícia e das forças armadas, do entorpecimento trazido por setores do entretenimento midiático e do amansamento por parte de determinadas igrejas, escolas e círculos sociais, impede que o brasileiro grite "foda-se" às instituições de seu país?

 

 

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.