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Leonardo Sakamoto

Reduzir maioridade penal é ato covarde de país que desistiu de seu futuro

Leonardo Sakamoto

27/09/2017 12h23

Foto: Moacyr Lopes Junior/Folha

A redução da maioridade penal de 18 para 16 anos está na pauta de votações da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal. A proposta com mais chance de aprovação, de autoria do então senador e hoje ministro da Relações Exteriores Aloysio Nunes (PSDB-SP), vale para crimes considerados hediondos e casos específicos, como homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte.

E, para que um adolescente seja julgado como adulto, o Ministério Público deve solicitar esse enquadramento ao juiz responsável caso a caso. Outra proposta, já aprovada na Câmara dos Deputados, reduz a maioridade penal para 16 anos sem necessidade de autorização. Entre os crimes hediondos estão estupro e sequestro. Mas há propostas no Congresso Nacional para transformar tráfico de drogas em crime hediondo.

Pesquisa Datafolha de abril de 2015 apontou que 87% da população brasileira se colocava a favor da redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. Ao todo, 11% era contrário à alteração, 1% foi indiferente e outro 1% não soube responder. A maior rejeição à proposta estava entre os que têm ensino superior (23%) e os mais ricos (25%). E 74% da população apoiava a redução para qualquer tipo de crime e não apenas os hediondos.

Em abril de 2013, outra pesquisa Datafolha, mostrou que 93% dos moradores da capital paulista concordava com a diminuição da idade legal a partir da qual uma pessoa possa responder por seus crimes para 16 anos. Ao todo, 6% era contra e 1% não soube responder. Dos que eram favoráveis à redução, 35% concordava que a idade fosse rebaixada a uma faixa de 13 a 15 anos e, pasmem, 9% até 12 anos.

Depois de um crime bárbaro, tem sido frequente que a população, assustada, peça um misto de Justiça e de vingança diante da histórias de violência. Olho por olho, dente por dente. Surgem discurso de ódio e rancor – de que "aquele bando de assassinos da Fundação Casa deveria é ser transferido para a prisão e apodrecer por lá". Não importa que menos de 1% dos jovens internados na antiga Febem estejam envolvidos com latrocínios. Se a gente diz que a culpa é deles, é porque alguma coisa fizeram de errado.

A Fundação Casa, do jeito que está, não reintegra, apenas destrói. A prisão, então, nem se fala. Mandar um jovem para lá e desistir dele, e para quê? Para que, daqui a 30 anos, ele volte e desconte tudo na sociedade? Reduzir a maioridade penal para 16 anos fará com que pessoas aprendam mais cedo a se profissionalizar no crime.

E se jovens de 14 começarem a roubar e matar, podemos mudar a lei no futuro novamente. E também se ousarem começar antes ainda, 12. E por que não dez, se fazem parte de quadrilhas? Aos oito já sabem empunhar uma arma. E, com seis, já se vestem sozinhos.

Um dos maiores acertos de nosso sistema legal é que, pelo menos em teoria, protegemos os mais jovens – que ainda não completaram um ciclo de desenvolvimento mínimo, seja físico ou intelectual, a fim de poderem compreender as consequências de seus atos. Completar 18 anos não é uma coisa mágica, não significa que as pessoas já estão formadas e prontas para tudo a partir daquele momento. Mas é uma convenção baseada em alguns fundamentos biológicos e sociais. E, o importante, é que as pessoas se preparam para esse marco de tempo e a sociedade se organiza para essa convenção.

Podemos mudar a convenção, mas isso não garante que a sociedade mude junto e se adapte a essa nova realidade. Pois o problema não é a idade, mas como preparamos as novas gerações para viverem em sociedade.

Ninguém está defendendo o crime, muito menos bandidos. Até porque, adolescentes que cometeram infrações devem ser internados por até três anos – e eles efetivamente são (pelo menos os negros e pobres). O que está em jogo aqui é que tipo de sociedade estamos nos tornando ao defendermos a redução da maioridade penal.

Pois através de ações desse tipo, mesmo em casos específicos, decretamos a falência do Estado e a inviabilidade do futuro e assumimos o cada um por si e o Sobrenatural por todos. Do que estamos abrindo mão ao pregar que as falhas na formação da juventude sejam corrigidas de uma forma que, como já ficou provado, não funciona, é apenas vingança?

Durante as votações de uma proposta de redução da maioridade penal conduzida por Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados e, hoje, nobre preso da Operação Lava Jato, vi parlamentares lançarem esgoto nos microfones do Congresso Nacional. Pois o nível de argumentação desse debate tem sido feito com base em discursos vazios e sensacionalismo. Muitos foram toscos, incompreensíveis, inacreditáveis.

É possível realizar uma discussão utilizando argumentos razoáveis e embasados em informações de qualidade de ambos os lados. Prós e contras. Mas muitos dos discursos dos deputados proferidos parecem ter saído da boca de apresentadores de programas de TV do tipo "espreme-que-sai-sangue" ou "estamos-seguindo-uma-viatura". Na época, um afirmou que o Estado Islâmico aprendia com as crianças e adolescentes do Brasil. Outro explicou que esses seres nem seriam mais crianças e adolescentes, mas demônios. Houve quem desse a entender que a redução da maioridade penal é uma vontade de Deus. Sem contar os que fizeram releituras de tragédias pessoais, tentando ganhar a simpatia dos colegas. Ouvi tantas vezes as expressões "homem de bem" e "mulher de bem" que acabei por ganhar uma pedra nos rins.

Os debates sobre esse tema no Congresso Nacional não tratam da garantia da segurança pública e da Justiça social sob uma ótica estrutural, de evitar problemas ao invés de corrigi-los, mas deitaram-se em vingança. Um simplismo temerário – sem trocadilhos. O que é uma das mais importantes matérias legislativas das últimas décadas tem sido discutida por parlamentares que não estão preparados para tanto, repetindo falas pré-fabricadas que justificam-se em si mesmas. Ou usam um rosário de lugares-comuns para convencer suas bases de que estão executando a sua vontade.

Afinal de contas, medo é controle. E manter a população sob o medo é a melhor forma de garantir o cabresto.

E não se enganem: do lado dos contrários à redução, poucos são os que conseguem argumentar decentemente o seu ponto ou contestar os favoráveis. Muitos não articulam racionalmente argumentos e dados ou mesmo entendem a profundidade da questão. Deputados federais e senadores capazes disso se desesperam frente à incompetência ou ignorância dos colegas.

Deputados e senadores pró-redução gostam de dizer que é dever do Congresso Nacional seguir a vontade da maioria da população. Esquecem, por um lado, que caso houvesse pesquisa a respeito, essa maioria provavelmente (e infelizmente) seria a favor de fechar o próprio parlamento. Ou reduzir o salário dos representantes políticos. E daria apoio à taxação de grandes fortunas e de grandes heranças e ao engavetamento de propostas de mudanças previdenciárias e trabalhistas vindas do governo federal.

Ao mesmo tempo, uma verdadeira democracia não é governar pela vontade da maioria, que – acuada e com medo – pode ser muito opressora. Como lembrou na época o deputado Silvio Costa (PT do B-PE), a opinião pública condenou Jesus Cristo e absolveu Barrabás. A este blog, ele lembrou que a opinião pública também esteve ao lado de Hitler e apoiou a ditadura em nosso país. Ela deve ser respeitada, mas não está necessariamente certa.

O que vocês acham que vai acontecer tão logo o Congresso Nacional aprove a redução da maioridade penal para 16 anos? Vamos nos enrolar em nosso cobertor de ignorância e hipocrisia e sair quentinho pelas ruas achando que estamos seguros.

Problemas estruturais precisam de soluções estruturais e não medidas pontuais. Não é simplesmente punindo o jovem em desacordo com a lei, mas também criando condições para que ele não caia nas graças da criminalidade. Caso contrário, o problema se reorganiza após a mudança da lei.

Quem ganha com isso? Políticos, comunicadores e falsos profetas que oferecem gratuitamente o discurso do medo, viciando a sociedade, que depois ficará ansiosa para comprar as soluções simplistas que prometem paz e tranquilidade. Soluções vendidas, aliás, por esses mesmos atores sociais, ao custo de "votem em mim", "assistam ao meu programa", "venham à minha igreja".

Desse ponto de vista, qual a diferença entre alguns dos membros dessa Santíssima Trindade do Medo e aqueles que usam jovens para cometer crimes, uma vez que ambos os grupos lucram horrores com a exploração da violência?

Há jovens que não têm nada a perder porque nada tiveram. E os que podem perder muito mas, sinceramente, não se importam, porque nós não nos importamos como eles quando deveríamos.

E há, é claro, os casos patológicos, cuja prevenção é difícil ou mesmo impossível. Ou alguém acha que um maluco que abre fogo contra uma igreja em nome da supremacia branca, como aconteceu nos Estados Unidos, ou alguém massacra crianças de uma escola, como ocorreu em Realengo, no Rio de Janeiro, pensa na punição que vai sofrer?

Tenho medo de indivíduos que assaltam, roubam e matam, mas também tenho medo de uma sociedade maníaca que não fala, apenas rosna diante do desconhecido. Pois essa sociedade cisma em não se diferenciar de seus ancestrais que tacavam pedras no escuro porque temiam a noite.

Em momentos de emoção extrema, buscamos soluções simples para diminuir a perplexidade, saídas para preencher a falta de sentido e tapar o buraco deixado pela perda individual ou coletiva. O problema é que elas não são úteis para resolver problemas nacionais, nem mesmo para contribuir com os processos simbólicos de luto e cura. Ajudam, contudo, naquela sede de vingança que carregamos desde sempre.

Por que não melhorar a punição de quem se associa a jovens com menos de 18 anos para cometer crimes? Porque precisamos de sangue desses jovens. São nos momentos de emoção extrema que nossa racionalidade é colocada à prova. Ou seja, que somos chamados a provar que deixamos de ser uma horda tresloucada que segue um único instinto, o medo.

A sensação de insegurança pode levar à raiva, à vingança e a mais violência. Ou a uma reflexão que gere mudanças estruturais possíveis, mas difíceis, como garantir uma vida melhor para a juventude no Brasil, evitando assim o problema antes dele acontecer. O que escolheremos? O que veremos no espelho no dia seguinte?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.