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Leonardo Sakamoto

Do antipetismo ao falso moralismo: Como manter a influência pelo medo

Leonardo Sakamoto

02/10/2017 13h15

Teto da Capela Sistina, no Vaticano, pintada por Michelangelo, entre 1508 e 1512. Nela se vê um idoso levando crianças nuas pelas quais era o responsável a ter contato com um jovem bombadão com pênis à mostra

A queda de Dilma Rousseff e a retirada de seu partido do poder levaram a determinados grupos e movimentos que construíram sua identidade no antipetismo a procurarem outro "inimigo" para poderem manter sua influência sobre uma parte do público que os segue desde o processo de impeachment. Ao que tudo indica, esse novo fator agregador tem sido uma visão distorcida da sexualidade, o que pode se verificar pelas acusações infundadas de crimes sexuais envolvendo artistas nas últimas semanas. Isso pode se transformar em uma espécie de "macarthismo tupiniquim": que, ao invés de acusar inimigos de comunistas, como ocorreu nos Estados Unidos da década de 50, encontram pedofilia em todos os lugares.

A percepção crescente por parte da população de que Michel Temer é pior do que Dilma Rousseff e de que a corrupção em seu governo segue igual ou pior levaria a grupos que se consolidaram através das manifestações de 2015 e 2016 a perderem força. Contudo, a capacidade de reinvenção desses grupos literalmente transferiu a figura do "mal" a ser combatido, antes residente apenas no PT, para uma visão distorcida da sexualidade. Se fosse uma batalha contra a pedofilia em si, seria ótimo e esses grupos mereceriam nosso apoio. Mas não é.

Esses movimentos descobriram que é só carimbar alguém do campo ideológico adversário com um rótulo de criminoso sexual – mesmo que nada tenha realmente ocorrido para tanto – que a turba passa a apontar o alvo como "delinquente" e o denunciante como "salvador".

"Esses grupos acharam um novo 'filão'. Estavam esvaziando por não ter mais o anti-PT e anti-Dilma. Encontraram a sexualidade. Com isso, estão cooptando o mundo religioso pelo medo", afirmou uma liderança tucana com a qual o blog conversou e vê, preocupado, esse processo acontecer em seu campo político-ideológico.

Aproveitando-se da falta de informação de uma grande parte da população e recorrendo a seus medos e tabus ancestrais, esses grupos distorcem o significado de manifestações artísticas. Não importa que nem eles acreditam no discurso que fomentam, a bem da verdade. Mas foram muito inteligentes ao perceber que esse tema é um elemento capaz de agregar em uma identidade e provocar ações.

A construção dos textos que alimentam essas polêmicas é semelhante à fabricação das chamadas "notícias falsas": cria-se uma interpretação distorcida de uma imagem ou fotografia, coloca-se um título sensacionalista ou mentiroso, joga-se no texto palavras-chave que atiçam determinados grupos sociais como "pedofilia", "sexo", "criança", "homem", "nudez", "arte", "imoral", "esquerdistas", "Deus". Com isso, fornece-se um gabarito alternativo de interpretação da realidade. A falta de elementos legais e sociais que caracterizem um ato artístico como crime sexual no texto passam despercebidos  para esse leitor. O que ele encontra é o suficiente para comprovar suas crenças e, através delas, reforçar o ódio a quem é diferente.

Não importa que uma exposição de arte ou que a presença de uma criança em uma performance artística esteja muito longe do que seja pedofilia – que, não raro, está mais próxima de alguns padres, políticos e familiares das vítimas. As pessoas vão internalizar a denúncia acreditando em informação incompleta e carente de interpretação. Muitos cegam-se pelo ódio e partem, a partir daí, para a violência. É interessante como as análises críticas a esse comportamento irracional têm sido seguidas por legiões de comentaristas que bradam "e se fosse sua filha naquela exposição?". Mostram, com isso, como o medo tomou conta deles diante de sua própria desinformação.

Milícias digitais criam campanhas de propaganda para atribuir o significado que elas desejam. Depois, é só deixar a ignorância e o medo humano fermentarem por conta própria, sendo desnecessário controlar cada passo posterior.

O único cuidado que vem sendo tomado é que a ação tenha o devido crédito, porque alguém tem que lucrar com o seu resultado. É, portanto, interessante ver ataques em nome da paternidade ou maternidade dos ataques. Nos casos de Porto Alegre e São Paulo, essa disputa foi visível.

A viralização das polêmicas em torno de manifestações artísticas nessas cidades, sob a justificativa de resgatar a "moralidade" ou os "bons costumes" (o que seria, já por si, uma tragédia), escondeu a real intenção: um processo de fortalecimento desses grupos e movimentos e de ascendência deles sobre uma parte da população.

Vendendo-se como consciência crítica e guardiões de valores, conseguem aumentar sua capacidade de construir significados e sentidos coletivos. Mais do que isso, conseguem trazer esse naco para dentro de sua área de influência e ter poder sobre ele para outros fins políticos ou econômicos.

Para entender a força disso, é só perceber que boa parte dos eleitores irá comentar este post sem tê-lo lido por inteiro, lançando palavras de ordem e lugares-comuns, demonstrando que, sobre este tema, não há diálogo. Acreditam que o assunto tratado é pedofilia por terem caçado uma palavra aqui e ali, quando, na verdade, é sobre a manipulação por eles sofrida. Falta amor no mundo, mas falta interpretação de texto.

Enquanto as milícias entendem como funciona o tabuleiro do jogo digital, boa parte dos social-democratas, dos socialistas e da direita liberal, do Brasil e de fora dele, segue analisando tudo sob uma ótica 1.0, usando ferramentas do século 19 e 20 para lidar com um mundo do século 21. É preciso voltar ao protagonismo da disputa de projetos de sociedade e de país ao invés de estar eternamente respondendo ao bullying social de determinados grupos que lucram quando o circo pega fogo.

Por fim, se quisessem combater a pedofilia ao invés de utilizá-la para carimbar delitos inexistentes em adversários do campo ideológico e usar isso como instrumento de hegemonia e poder, esse grupos e movimentos deveriam realizar campanhas de apoio ao papa Francisco, que sofre pressões de dentro da própria Igreja Católica contra a punição a religiosos que cometeram esse crime aos milhares em todo o mundo. Também ajudaria se combatessem a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, considerada uma das piores formas de trabalho infantil que o Brasil prometeu erradicar. Atuo nessa área há quase 20 anos e posso dizer que a situação é pior do que se imagina. Seria útil também que, com seu poder de comunicação, trouxessem luz à discussão sobre como esse crime ocorre realmente, uma vez que grande parte das agressões são cometidas por pessoas próximas à criança – um pai, um avô, um padrasto, um irmão, um técnico, um professor. E não é a arte sobre a sexualidade, mas a falta do tipo de reflexão por ela promovida, que facilita com que "homens e mulheres que se intitulam como de bem" continuem sendo algozes de crianças.

Se quisessem, é claro.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.