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Leonardo Sakamoto

A morte escolhe bairro, classe social e cor de pele em São Paulo

Leonardo Sakamoto

13/10/2017 11h01

Muito da manifestações culturais e da vida noturna que pipoca longe do centro expandido da cidade de São Paulo não deixa nada a desejar à dos bairros mais ricos de São Paulo. A não ser pelo fato de que, na prática, alguém pode ficar até altas horas em Moema ou em Pinheiros de forma segura. Enquanto que, na periferia, é maior o risco de morrer baleado, após um assalto que deu errado ou em uma chacina.

Levantamento da Folha de S.Paulo mostra que apenas 15% dos latrocínios aconteceram no chamado "centro expandido" da capital paulista, sendo que os bairros citados acima, além de Alto de Pinheiros, Morumbi e Campo Belo, regiões ricas, nem aparecem nas estatísticas.

Por outro lado, Guaianases, Itaim Paulista, José Bonifácio, São Mateus, Lajeado, São Miguel e Vila Curuçá, na periferia, reúnem 9% da população, mas 24% dos latrocínios. As principais vítimas de assaltos seguidos de morte são homens acima de 40 anos e com maior grau de instrução. E a maioria dos mortos em homicídios comuns são jovens com ensino fundamental. Na contagem geral, a população negra é a que mais morre.

Quem tenta sorrateiramente afirmar que os mais ricos também estão à mercê do mesmo tipo de violência que os mais pobres é inocente ou desonesto. É mais fácil morrer na Estrada de Itapecerica do que na Avenida Europa. A diferença é que um assassinato nos Jardins vira manchete, enquanto que, na periferia, deixou de ser notícia. A sensação de medo pode ser generalizada, mas a morte escolhe bairro, classe social e cor de pele em São Paulo.

É importante garantir que os moradores das periferias tenham livre trânsito a toda cidade e aos seus equipamentos culturais. Pois as trocas possíveis de serem realizadas entre diferentes jeitos de viver e modos de pensar são fundamentais para que possamos ter uma sociedade menos preconceituosa e mais solidária.

Contudo, mais importante do que isso, é garantir que todos tenham, antes de mais nada, acesso às suas próprias comunidades, divertindo-se nelas, produzindo sua música, sua poesia, curtindo bares, sem o risco de morrer ou levar uma "bala perdida" na nuca.

Decretamos uma espécie de toque de recolher aliado a um estado de sítio, em que os mais pobres são obrigados a ficar dentro de suas casas, sob o risco de serem mortos por assaltantes, por traficantes, por milícias de policiais, por policiais ou pela disputa de todos contra todos.

Cresci no Campo Limpo, que era um bairro pobre e hoje possui áreas de classe média. Lembro que era difícil sair do bairro e ir para a "cidade", como minha mãe falava, porque o transporte era medonho. Mas havia mais furtos do que latrocínios. Não é saudosismo de passado, mas a avaliação de alguém que viu as transformações de seu bairro.

O crescimento econômico dos chamados centros periféricos ressaltou a desigualdade social. São nesses locais e não nos bairros encastelados mais nobres que a diferença entre os que têm algo e os que nada têm fica evidente. A fricção desse choque de realidades em uma sociedade que aprendeu que a posse de dinheiro e bens é a diferença entre existir e ser invisível é um dos elementos que explicam essa violência.

Por que a desigualdade é tão problemática quanto a pobreza? Porque dificulta que as pessoas vejam a si mesmas e as outras pessoas como iguais e merecedoras da mesma consideração e isso passa a guiar as relações sociais. Ao mesmo tempo, há a percepção (correta) de que o poder público existe para servir aos mais abonados e controlar os mais pobres – ou seja, protege o privilégios do primeiro grupo, usando violência contra o segundo, se necessário for.

Por fim, uma consideração sobre desigualdade.

Meus amigos moradores de Alphaville, bairro de condomínios de alto padrão localizado na Grande São Paulo, o apelidaram de "bolha". Um ilha de prosperidade, criada pelo medo e pela comodidade, que pode criar pessoas desconectadas da realidade e dos seus problemas. Como um castelo medieval, essas bolhas erguidas também em outros locais da capital tentam deixar a violência do lado de fora, como se isso fosse realmente possível. Talvez seja para meia dúzia de multimilionários que vão ao cinema de helicóptero, tem batedores para os levar à academia e seguranças até na porta do banheiro. Dinheiro compra quase tudo, mas liberdade de verdade é barata.

Carros blindados levam para as ruas da cidade a sensação de encastelamento das mansões muradas e dos condomínios fechados. Sentimento falso, pois não são muros, arames farpados e chapas de aço que garantirão efetiva segurança aos moradores de uma metrópole como São Paulo. Creio que, no final das contas, funciona como efeito placebo, mas, mais dia ou menos dia, a bomba estoura por perto.

São Paulo tem mais de 12 milhões de habitantes, apenas uns 10% com acesso a todos os seus direitos previsto em lei. Lembra a antiga Atenas, com uma democracia para uns poucos iluminados e o trabalho pesado para o grosso da sociedade, composta de escravos. Enquanto uns aproveitam uma vida "segura" dentro de clubes, restaurantes, boates e residenciais, outros penam para sobreviver, ser reconhecidos como gente e não morrer na esquina de casa voltando tarde do trabalho.

Não estou culpando o proprietário da residência de buscar mais segurança para a família, mas se o arame não for suficiente qual será o próximo item instalado? Vai se armar até os dentes? Adotará técnicas já testadas e conhecidas, como caldeirões de chumbo derretido e arqueiros, ou abraçará de vez a tecnologia com o uso de canhões laser? O fato é que essa escalada, que caminha de mãos dadas com o discurso do medo, não tem limites. O que é ruim para os moradores e para a cidade.

Olhando castelos e condomínios pipocando aqui e ali com essas cercas de presídio reluzentes, tenho a certeza de que a solução não é por aí. Muito menos aumentar a força da mão esquerda do Estado, da repressão, sem que a mão direita, que garante qualidade de vida, seja mais presente. As "hordas bárbaras" um dia vão se voltar contra os "cidadãos de bem". E, no final, ou a cidade será boa para todos ou a aristocracia que sobrar após o caos para o qual caminhamos não conseguirá aproveitar sua pax paulistana.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.