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Leonardo Sakamoto

Doria, o cardeal e um farelo mágico: Vamos doar migalhas ou repartir o pão?

Leonardo Sakamoto

19/10/2017 22h57

O prefeito João Doria e o cardeal arcebispo de SP Odilo Scherer. Foto: Amanda Perobelli/Estadão Conteúdo

João Doria defendeu seu composto orgânico ao lado de Odilo Scherer, cardeal arcebispo de São Paulo, nesta quarta (18). O evento foi uma resposta da prefeitura às críticas que a farinata – feita a partir do processamento de alimentos próximos à data de vencimento e que seriam descartados – recebeu de especialistas ligados à saúde pública, assistentes sociais e sociedade civil. O objetivo era distribuir aos estudantes mais pobres, mas o destino do projeto agora é incerto devido a problemas decorrentes da falta de planejamento.

O granulado, feito à base da farinata, chegou a ser batizado de "ração" pelos opositores à ideia, por sua aparência. No evento, Scherer disse que fica ofendido quando chamam o produto dessa forma. "Desrespeitar o pobre é lhe negar o alimento, é a fome". Nesta quinta, o cardeal reapareceu, em matéria no Jornal Nacional, pedindo para "que não se politize a questão da fome".

Imediatamente me lembrei de uma citação atribuída ao já falecido Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, que lutou contra a ditadura e esteve sempre ao lado dos mais pobres: "Se falo dos famintos, todos me chamam de cristão, mas se falo das causas da fome, me chamam de comunista".

É impossível não se politizar a questão da fome por uma simples razão: ela, ao menos no Brasil, é fruto de decisões políticas. Decisões que mantém a concentração de riqueza, de terra para plantar e de acesso aos alimentos nas mãos dos mais ricos. Enquanto que, para a grande massa de esfarrapados, só resta rezar. O que também traz lucro para muita gente.

Já passamos do momento da distribuição de complementos alimentares ultraprocessados ou de medidas plásticas de soro caseiro em uma grande metrópole como São Paulo. Fome, em uma cidade como a nossa, não é resultado de escassez, mas de concentração.

O poder público municipal deveria gastar mais energia em ações que garantam o acesso à comida de verdade, como implementar uma política de segurança alimentar e nutricional, que inclua a ampliação de feiras livres, melhore a logística, utilize bancos de alimentos, aumente a rede de restaurantes populares, incorpore uma educação alimentar usando escolas e centros comunitários.

E, ao mesmo tempo, que busque parcerias, não na Itália e na China, mas em Brasília e na região metropolitana de São Paulo, para apoiar a agricultura familiar e orgânica e evitar a substituição de comida de verdade por ultraprocessados nas escolas públicas, como chegou a acontecer. Pequenos agricultores são os responsáveis pela maior parte dos produtos in natura que consumimos. Mas a maior parte dos recursos e das prioridades ainda passa longe desse pessoal, por mais que a atenção dada eles tenha crescido nos últimos tempos. Segue, aliás, com o povo da bancada ruralista que quer cancelar o combate ao trabalho escravo.

A lista de possibilidades para aumentar o acesso a alimentos em São Paulo é muito grande. Depende de vontade política. Mas, para tanto, precisamos derrubar algumas velhas estruturas ao invés de dar roupagem nova ao mesmo de sempre.

Cito, portanto, um outro católico, Pedro Casaldáliga, atual bispo emérito de São Felix do Araguaia, que, durante toda sua vida, defendeu a solidariedade aos pobres e desamparados na Amazônia brasileira.

Pedro não ensinou que solidariedade significa uma forma distorcida de caridade, como uma política que distribui sobras – o que consola mais a alma dos ricos do que o corpo dos pobres. Pois esta se baseia em uma comunidade que não conseguiu entender a sábia ideia presente no ato de compartilhar. Mas que solidariedade passa por reconhecer no outro e na outra seus semelhantes e caminhar junto a eles pela libertação da alma e do corpo de todos. Ou seja, não é doar migalhas, mas repartir o pão, produzido com diálogo e respeito.

A pergunta é: os gestores de São Paulo conseguirão entender isso ou estarão preocupados demais consigo mesmos?

Afinal, como resumiu o próprio Pedro Casaldáliga, "Malditas sejam todas as cercas! Malditas todas as propriedades privadas que nos privam de viver e amar! Malditas sejam todas as leis amanhadas por umas poucas mãos para ampararem cercas e bois, fazerem a terra escrava e escravos os humanos".

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.