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Leonardo Sakamoto

Brasil que sonha com pelourinho torna Justiça do Trabalho essencial

Leonardo Sakamoto

30/10/2017 08h10

Seria ótimo viver em um país em que a Justiça do Trabalho fosse desnecessária. Com todo o respeito a procuradores e magistrados que atuam nessa área, mas adoraria que chegasse o momento em que a maioria deles seja dispensada porque passamos a respeitar leis e contratos.

O problema é que, em uma sociedade complexa e com crises cíclicas, isso é ficção. Dados do Relatório Justiça em Números 2017 (ano-base 2016), divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mostraram que o item "Rescisão do Contrato de Trabalho e Verbas Rescisórias" representou 11,51% do total de processos ingressados na Justiça no ano passado, sendo novamente o assunto mais recorrente no Poder Judiciário brasileiro. No total, foram 5.847.967 de novos processos, enquanto, em 2015, o número ficou em 4.980.359 (11,75%).

Verbas rescisórias não pagas ou pagas em valor menor do que o estipulado legalmente após uma demissão dizem respeito não apenas a salários, mas também a outros direitos, como aqueles previstos no artigo 7o da Constituição Federal, tais como aviso prévio, férias e adicional de férias, 13o salário, FGTS.

Quando o trabalhador perde seu emprego e não recebe as verbas rescisórias, fica comprometida a própria relação de sobrevivência, dele e de sua família. Se ele não encontra um sindicato atuante, estruturado, fortalecido e honesto para representar seus interesses, sobra para o Judiciário trabalhista. O que, claro, significa um ônus para o restante da sociedade que terá que arcar com esse custo.

Alertamos que, antes de uma Reforma Trabalhista, deveria ter ocorrido uma Reforma Sindical. Em que fosse discutido não apenas o fim do imposto sindical obrigatório, mas também o fim do monopólio de representação de um sindicato por cidade ou região, levando às organizações a competirem entre si para ver quem melhor representaria os trabalhadores. E, claro, a possibilidade de um sindicato representar todos os trabalhadores de um mesmo setor econômico, do operário da linha de montagem, passando pelo operário da fornecedora de autopeças até o terceirizado da limpeza. Mas isso significaria equilibrar o jogo, o que levaria muita gente a perder dinheiro com isso.

Se com uma Justiça trabalhista sobrecarregada, as demandas dos trabalhadores não são atendidas, imagine sem essa instância de mediação na relação capital e trabalho.

Mas há uma segunda consequência da atuação desse setor da Justiça, que é, digamos, um processo civilizatório. Ou seja, enquadrar a relação entre capital e trabalho dentro dos parâmetros mínimos dos direitos fundamentais. Por exemplo, usinas do interior paulista operavam há anos sem um único cortador de cana em suas folhas de pagamento, apesar de milhares deles trabalharem diariamente em suas lavouras de cana. Ao obrigar, o empresariado a contratar diretamente esses empregados ao invés de usarem artifícios para reduzir os custos de produção, deixando claro que trabalho não é um favor, a Justiça do Trabalho deu um passo a mais para longe da herança escravista que moldou as relações trabalhistas brasileiras.

Ao mesmo tempo, quando o Ministério Público do Trabalho e a Justiça do Trabalho atuam para manter funcionando o sistema de combate ao trabalho infantil e ao trabalho escravo e operam contra a desigualdade de direitos de mulheres e negros no mercado de trabalho, entre outras ações, o beneficiado não é apenas o trabalhador, mas toda a coletividade. Porque liberdade e dignidade são valores cujo desrespeito atinge a todos e não apenas aos envolvidos diretamente.

Esse custo, muitas vezes não contabilizado, vale o investimento. Porque diz respeito ao tipo de país que desejamos construir.

Por fim, sempre é bom lembrar. O presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia (DEM-RJ), que tem sido incensado pelo mercado como um elemento de equilíbrio em nome da continuidades das reformas, já deixou claro que, se depender dele, direitos trabalhistas e o bom funcionamento do mercado de trabalho serão peça de museu.

Quando um político – que, na ausência de Michel Temer, assume a Presidência da República – afirma que "o excesso de regras no mercado de trabalho gerou 14 milhões de desempregados" e, pior, que a "Justiça do Trabalho não deveria nem existir", pode ter certeza que o apocalipse está próximo.

O sistema judicial trabalhista, mesmo com suas imperfeições, tem sido o responsável por garantir o mínimo de dignidade a milhões de brasileiros e a evitar que o mercado de trabalho funcione (apenas) com base na lei da selva, ou seja, na sobrevivência do mais forte. Porque muitos sindicatos ganham com o sistema defeituoso como está. Porque muitas associações empresariais desejam que isso aqui continue a Casa Mãe Joana para que possam fazer o que quiserem em nome da competitividade.

Como não pode acabar com a Justiça do Trabalho, Rodrigo Maia, que está à frente de uma das piores legislaturas da Câmara dos Deputados da história, reduziu o número de trabalhadores que podem ter acesso a ela. Para tanto, foi um dos artífices da aprovação da Lei da Terceirização Ampla, levando, em muitos casos, a relação entre empregado e patrão se transformar em uma relação entre grande empresário e microempresário.

É paradigmático que, em meio a uma grave crise econômica, a Justiça do Trabalho seja alvo de críticas disparadas a partir de lideranças do Congresso Nacional, de membro do Supremo Tribunal Federal e de diferentes níveis do Poder Executivo, fazendo coro a diferentes associações empresariais.

A Justiça do Trabalho deveria ser aprimorada e fortalecida. E não se tornar alvo de críticas de outros poderes visando à sua extinção.  O problema é como explicar isso para um país em que parte da elite e do poder público tem saudade do pelourinho.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.