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Leonardo Sakamoto

Direitos humanos no Enem é um teste psicotécnico para viver em sociedade

Leonardo Sakamoto

03/11/2017 11h22

Foto postada incentiva a homofobia Foto: Reprodução/ Facebook.

Uma polêmica se instalou por conta da decisão do Tribunal Regional Federal da 1a Região de suspender a regra que dava nota zero, sem direito à correção, a quem desrespeitasse os direitos humanos na redação do Enem – prova que será realizada neste domingo (5).

A decisão não garante que quem tecer um discurso de ódio contra minorias, por exemplo, não possa ter nota zero. Apenas que a redação do semovente não será desconsiderada de antemão, o que não impede uma nota baixa ou mesmo um zero na correção, pois o respeito aos direitos humanos segue como recomendação. Ou seja, trouxe apenas mais insegurança para os candidatos e pressão sobre os corretores. Eu diria que, na dúvida, melhor seguir as regras antigas. Mas não só para conseguir uma boa nota.

A liberdade de expressão, que inclusive é um dos direitos humanos, deve ser garantida. Desde que não seja usada contra a efetivação de outros direitos. Pois nenhum dele é absoluto, nem o direito à vida – caso contrário, não existiria a legítima defesa.

E não é que o tema dos direitos humanos não possa ser alvo de críticas e de questionamentos em uma redação. Os próprios movimentos sociais que atuam diariamente em sua defesa, organismos internacionais que zelam por sua implementação ou agentes públicos que lançam mão de ações para protegê-los discutem seus limites e sua natureza.

Por exemplo, saiba que o direito à propriedade está previsto no artigo 17 da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas – documento que muitos adoram criticar sem ler. Há um debate de décadas sobre qual o momento em que a propriedade deixa de ser um direito para garantir a dignidade de um ser humano e passa a ser, através de sua concentração, instrumento de opressão de outros seres humanos.

E são direitos humanos também a garantia de não ser assaltado e morto, não ser violentado pelo Estado, professar uma religião, abrir um negócio, ter uma moradia e não morrer de fome, não ser escravo, entre tantos outros.

O estudante deve ser instigado a participar e questionar, mas também a fazer isso dentro dos limites do respeito à integridade e à vida alheias.

Se o candidato quiser questionar os direitos humanos ao formular sua redação, usando argumentos sólidos e racionais – que vão além daqueles infantis e vazios utilizados por milícias digitais nas redes sociais, recheados de lugares comuns e de ideias que não resistem ao primeiro sopro de lucidez – ótimo. Que vá em frente e tente a sorte.

Porém, como você (ainda) não vive em uma teocracia fundamentalista ou uma ditadura militarista, o respeito à dignidade ainda é a base de nossas relações sociais. Para se contrapor a isso, não adianta subsídios dados por memes ou mensagens lacradoras de redes sociais. Ou tentar ganhar através de um discurso bonito, mas sem conteúdo. É preciso dados, estudos e pesquisas. O formato básico da redação do Enem, a dissertação, demanda que o candidato construa uma argumentação baseada em fatos e não em achismos, suposições e crenças para defender sua tese.

Portanto, quem quiser ir contra os direitos humanos em uma sociedade construída com base no seu respeito terá que fazer um malabarismo imenso para escorar sua tese. Imagine a dificuldade de defender ideias racistas, supremacistas, machistas, homofóbicas, xenófobas e preconceituosas em geral, tentando argumentos racionais. Vai ter gente que não conseguirá terminar a tarefa a tempo. Para falar a verdade, talvez leve uma vida inteira tentando isso.

A prova de redação que testa a capacidade de reflexão no Enem, principal seleção de acesso ao ensino superior no país, não se importa se você é de direita ou de esquerda, progressista ou conservador. Mas deve verificar sim se é capaz de construir uma reflexão sobre o mundo que respeite uma série de balizas, entre elas o pacote mínimo de direitos que temos acesso por nascermos humanos, cuja proteção está prevista na Constituição Federal de 1988 e em um rosário de tratados e acordos internacionais.

E verificar se, nessa reflexão, é capaz até de criticar esse pacote de direitos sem abrir mão da defesa incondicional da dignidade e da integridade individual e coletiva.

Afinal, o país deve ter o objetivo de formar pessoas de livre pensamento, mas não pode apoiar o surgimento de agentes que destruirão os valores que garantem o mínimo funcionamento do mundo em que vivemos, valores construídos ao longo de séculos através de lutas e debates. O país deve almejar formar cidadãos, não monstros.

Considere, portanto, que respeitar os direitos humanos, com ou sem anulação de prova, não é apenas um critério de correção de redação. Mas um teste psicotécnico para viver em sociedade.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.