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Leonardo Sakamoto

No Brasil de Temer, quem combate trabalho escravo é acusado de "comunista"

Leonardo Sakamoto

04/11/2017 11h06

Trabalhadores produzindo peças para oficina responsabilizada por trabalho escravo (Foto: MPT/Divulgação)

O Brasil não é para principiantes, realmente. Tive a oportunidade de ouvir no Congresso Nacional que a fiscalização de formas contemporâneas de escravidão e mais especificamente a "lista suja" do trabalho escravo (cadastro público de empregadores flagrados por esse tipo de exploração) são coisa de "comunista". O assunto esteve nos holofotes nas últimas semanas por conta da tentativa do governo Michel Temer de reduzir as situações que podem caracterizar trabalho escravo no Brasil, dificultando a libertação de pessoas e reduzindo a transparência da "lista suja", a fim de atender a uma antiga demanda da bancada ruralista.

Ou seja, o combate ao trabalho escravo, que, em última instância, significa garantir que o contrato de compra e venda de força de trabalho, base do capitalismo, seja feito corretamente, é coisa de "comunista". Essa justificativa bisonha voltou a aparecer nas últimas semanas por defensores da medida do governo Temer.

Considerando que o mercado precisa de informação de qualidade circulando livremente para que investidores, financiadores e parceiros comerciais possam tomar decisões baseadas na realidade, eu não imagino nada mais capitalista do que um instrumento como a "lista suja". Afinal, fornece subsídios para que se realize gerenciamento de riscos. O que os críticos a elas prefeririam? Uma economia planificada em quinquênios, em que um Estado autoritário obrigasse às empresas a comprar de uma lista fechada de fornecedores chancelados pelo comitê central do partido no poder?

O problema é que vivemos em um capitalismo de periferia, selvagem e que não gosta de regras. Parte de nosso empresariado não aguentaria nem cinco minutos em um livre mercado, sem um governo que injete bilionários subsídios e perdoe bilionárias dívidas, privatizando lucros e socializando os prejuízos com o resto do país. Ao mesmo tempo, não sobreviveria a um sistema de sindicatos realmente fortes e livres, como na Alemanha, em que os trabalhadores ajudam a decidir os rumos das empresas. Não admira que sintam-se desconfortáveis quando informação de interesse público sobre impactos negativos de ações empresariais corre livremente, sendo usada para tomar decisões.

A erradicação do trabalho escravo contemporâneo passa por impor prejuízos financeiros para quem se utiliza dessa prática criminosa no sentido de garantir lucro ou competitividade. Para isso, é necessário que empresas monitorem e atuem em suas cadeias produtivas e que governos fiscalizem a situação trabalhista em seu território e garantam leis que envolvam o setor empresarial. O Brasil, até o governo Michel Temer tentar acabar com tudo, era citado como referência pelas Nações Unidas nesse campo exatamente por implementar essas ações. Sua política nacional no combate a esse crime – criada, em 1995, no governo Fernando Henrique, aprimorada por Lula e mantida (com tropeços, a bem da verdade) por Dilma – foi tida como exemplo na comunidade internacional.

Após décadas de pressão da sociedade civil, que desde 1970, denunciava sistematicamente a ocorrência de trabalho escravo contemporâneo, o governo brasileiro reconheceu diante das Nações Unidas a existência dessa forma de exploração em seu território em 1995. Naquele ano, foi estabelecida a política pública contra essa violação de direitos humanos, baseada em grupos de inspeção do trabalho, que contam com a presença de policiais e procuradores. Eles investigam denúncias, libertam trabalhadores, obrigam o pagamento de salários e direitos trabalhistas e dão início a processos para compensação aos trabalhadores ou punição criminal aos envolvidos.

Desde então, cerca de 50 mil trabalhadores foram resgatados. Pessoas e corporações flagradas se beneficiando de trabalho escravo passaram, em 2003, a serem inseridos em um cadastro público de transparência, chamada de "lista suja". Após terem o direito à defesa administrativa em duas instâncias, permaneciam por dois anos na lista, período em que deveriam quitar os débitos com os trabalhadores e o Estado e garantir que não houvesse reincidência desse crime.

A base de dados é utilizada por dezenas de companhias públicas e privadas, aplicando sanções comerciais e financeiras, apesar de não serem obrigadas por lei a fazer isso. Em dezembro de 2014, o Supremo Tribunal concedeu uma liminar a uma associação de empresas de construção suspendendo a lista. Em maio de 2016, após aprimoramentos na portaria que regula a lista, a ministra Cármen Lúcia cancelou a suspensão. Foram adotadas medidas para facilitar a empresas e pessoas flagradas acompanharem seus processo e possibilitar que nem fiquem na lista caso aceitem firmar um termo de compromisso com o governo e adotar ações para resolver a origem do problema e reinserir trabalhadores.

Mas o governo Temer só voltou a publicá-lo em março deste ano, após perder uma batalha de liminares com o Ministério Público do Trabalho na Justiça. E atrasou por mais de um mês sua publicação, que deveria ter sido feita em setembro e só ocorreu no final de outubro – e novamente por pressão do MPT. No tempo em que ficou suspensa, a imprensa e a sociedade civil reconstruíram e relançaram a lista, utilizando a Lei de Acesso à Informação, a fim de manter a transparência sobre casos de trabalho escravo. Essa "lista de transparência" foi utilizada por várias companhias para análise de risco e bloqueio daqueles que utilizaram trabalho escravo.

No Brasil, quando uma empresa de capital aberto era inserida na atualização semestral da "lista suja", suas ações sofriam significativas quedas na Bolsa de Valores. Foi assim com grandes empresas produtoras de açúcar e álcool ou grandes construtoras, por exemplo. Sem acesso a crédito e com a marca sofrendo o impacto negativo na mídia, investidores passavam a pressionar a corporação a adotar políticas para evitar que o problema voltasse a acontecer. Temos casos de cadeias produtivas que melhoram significativamente por conta disso.

Três importantes leis foram aprovadas nos últimos anos nessa área de responsabilidade empresarial e trabalho escravo: uma, do Estado de São Paulo, o mais rico do país, banindo por dez anos a empresa que se beneficiar desse crime. Outra com teor semelhante, mas pelo município de São Paulo. E uma lei federal que prevê o confisco sem indenização de propriedades rurais e urbanas onde trabalho escravo foi flagrado, destinando-as à reforma agrária ou a programas de habitação. Já há processos abertos que citam essas leis esperando resposta da Justiça.

Esses elementos de denúncia e punição fomentaram um comportamento de investidores que passaram a ver o risco de danos às marcas envolvidas após denúncias virem a público. Boicote não funciona no longo prazo. O que percebemos no Brasil é que, ao denunciar uma empresa por envolvimento direto ou indireto em trabalho escravo, isso gera uma repercussão na imprensa. Comentários negativos começam a circular na sociedade e em redes sociais, aumentando a percepção de risco a determinada marca por parte de investidores, acionistas ou parceiros comerciais. Com medo de que a denúncia signifique depreciação de seu investimento, movimentações ocorrem na Bolsa de Valores ou junto aos acionistas. Isso gera uma janela de oportunidade para que a empresa envolvida dê uma resposta à sociedade, abrindo a possibilidade da implantação de políticas corporativas. A janela é de curta duração, pois o consumidor esquecerá, a imprensa trará outro escândalo e o investidor recuperará a confiança. Mas, se bem usada, significa mudanças significativas.

O uso apenas de auditorias independentes, auto-regulação e autodeclaração, como defendem algumas associações do agronegócio e da indústria, não garantem a mesma qualidade de monitoramento e controle que a ação de fiscais e procuradores do trabalho e de leis que garantam punição a quem se beneficia desse tipo de exploração.

Além do mais, não se pode combater um crime apenas com "conscientização" como apregoa a bancada ruralista. A questão não é falta de consciência, pois há um cálculo econômico bem claro que se utiliza de concorrência desleal e dumping social para obter vantagem nos negócios. Busca-se corte de custos onde é mais fácil, ou seja, no lombo do trabalhador.

Tenho plena consciência da dificuldade de adotar esse processo em escala global, ainda mais porque há Estados praticamente reféns de determinados setores econômicos ou de empresas nacionais e internacionais, seja através do financiamento de seus governantes e parlamentares, seja pelo controle da economia. Mas, vale lembrar, que boa parte do problema está inserido em cadeias produtivas globais, que não começam e terminam em determinado país. Se a ação de consumidores de celulares pressionando investidores e desenvolvedores de um lado do mundo pode levar à melhoria da qualidade de vida de operários envolvidos em sua fabricação do outro lado, imagine o que não conseguiríamos com a criação de tratados e princípios obrigatórios, sob pena de sanção econômica, a empresas lenientes com o trabalho escravo?

No Brasil, onde ocorreram avanços, a ação do governo Michel Temer, de políticos conservadores no Congresso Nacional e o contra-ataque de determinados grupos empresariais da agroindústria, do vestuário têxtil e da construção civil estão tentando minar as bases da política de combate ao trabalho escravo. Seja buscando mudar o conceito de trabalho escravo, retirando a proteção à dignidade, o que dificultaria a libertação de pessoas, seja criando entraves para a divulgação da "lista suja", seja tentando derrubar as leis que punem trabalho escravo.

Nenhuma política para cadeias produtivas terá sucesso sem a punição do capital diretamente envolvido. Pois trabalho escravo não é um desvio moral, mas um instrumento para facilitar a competitividade e a obtenção de lucro.

Um sistema de inspeção do trabalho público e de qualidade é fundamental para identificar atores econômicos envolvidos com trabalho escravo. Uma lista patrocinada pelo Estado ou com informações do Estado, garantindo transparência aos nomes dos envolvidos, é a base para a criação de políticas corporativas efetivas para o combate ao trabalho escravo. A realização e divulgação de pesquisas identificando as cadeia produtiva de atores envolvidos com trabalho escravo tem o potencial de envolver consumidores no combate a esse crime. Pois não existe consumo consciente sem informação de qualidade.

Por fim, seria ótimo se chegar o dia em que a Organização Internacional do Trabalho e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos tiverem o mesmo poder da Organização Mundial do Comércio ou do Fundo Monetário Internacional. Pois sabemos que há uma escala de valores distorcida e injusta enquanto o capital for livre para correr globalmente, mas os trabalhadores forem barrados em fronteiras ou serem escravizados longe de casa, em outro estado ou outro país.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.