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Leonardo Sakamoto

Droga ser responsável por 30% dos presos é sinal de falência da civilização

Leonardo Sakamoto

09/12/2017 09h19

Moradoras da Rocinha se refugiam em passarela durante tiroteio. Foto: Gabriel Paiva/Agência O Globo

O Estado brasileiro deveria se focar em combater crimes contra a vida e a garantir a dignidade das pessoas, mas gasta seu tempo com uma falida "guerra às drogas". Caso legalizasse os entorpecentes, regulando seu comércio e tratando a questão como saúde pública, a disputa conflituosa de mercados de drogas – origem da violência relacionada ao tráfico – seria desidratada. E com isso, cairia o número de homicídios, de tráfico de armas e da corrupção envolvendo policiais e políticos. Hoje, superlotar cadeias com a prisão de traficantes serve, na melhor das hipóteses, para enxugar gelo. E, na pior, para entregar sangue novo às fações criminosas dentro dos presídios e, portanto, jogar gasolina em um prédio em chamas.

De acordo com a última atualização do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, divulgada nesta sexta (8), o país tem 176.091 pessoas presas por tráfico de drogas, somando as que foram condenadas e as que estão aguardando julgamento, o que representa quase um terço do total de encarcerados do país. Desse total, 151.782 são presos por venda de drogas, 20.122 por associação ao tráfico e 4.776 por tráfico interacional.

Os números mostram que o combate ao tráfico gera mais mortos que o consumo de drogas – até porque a droga que, estatisticamente, mais mata e provoca mortes se chama álcool. Você pode comprá-la no supermercado ou ver sua propaganda na TV. Mas ela não é proibida, apenas regulada. Tal como o tabaco.

A forma como o tráfico se organizou e a política adotada pelo poder público para combatê-lo estão entre as principais razões desse conflito armado organizado. Portanto, não há saída para a violência armada organizada e para o sistema prisional que não passe pela discussão da legalização. Outros países têm feito esse debate como uma das soluções para reduzir a disputa armada por territórios. Sabem que a "guerra às drogas" falhou, tendo sido útil para o controle da própria população sob o argumento do medo e para alimentar o tráfico de armas. Por aqui, infelizmente, ainda se discute qual o tamanho do porte de maconha que pode dar cadeia.

Vale lembrar o caso de Rafael Braga. Preso durante as manifestações de junho de 2013 pela acusação de portar artefato explosivo (ele carregava água sanitária e Pinho Sol), foi condenado e depois liberado para cumprir prisão domiciliar. Mas foi preso novamente, acusado de envolvimento com o tráfico de drogas. Segundo a polícia, ele carregava 0,6 g de maconha e 9,3 de cocaína e um rojão – o que ele nega, afirmando que o flagrante foi forjado. Mesmo assim, foi condenado a 11 anos e três meses de prisão por, segundo os policiais, carregar uma quantidade ridícula de psicoativos.

Por ter contraído tuberculose na cadeia e estar bastante debilitado, teve – finalmente – seu pedido de habeas corpus atendido pelo Superior Tribunal de Justiça, uma vez que o Tribunal de Justiça carioca negou sua soltura. Agora, vai cumprir a pena em casa. Detalhe desnecessário: Rafael é jovem, negro e morador de uma comunidade pobre.

Como registrei aqui em setembro, em seu discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas, o presidente da Colômbia Juan Manuel Santos criticou a "guerra às drogas" e defendeu que são necessários outros enfoques e novas estratégias. "É preciso entender o consumo de drogas como um assunto de saúde pública e não de política criminal", disse. Santos lembrou que, enquanto houver consumo, haverá oferta e pediu aos outros chefes de Estado que conhecessem as experiências de regulação da produção, comércio e uso de drogas que estão sendo implementadas ao redor do mundo.

"A guerra contra o narcotráfico ceifou muitas vidas, e, na Colômbia, estamos pagando um preço muito alto, talvez o mais alto entre as nações, e o que estamos vendo é que o remédio está sendo pior que a doença", afirmou o presidente colombiano, um dos responsáveis pelo acordo de paz que pôs fim à guerra contras as Farc.

No Brasil, o remédio está sendo pior que a doença. No intuito de combater o tráfico, estamos entregando jovens para serem treinados nas cadeias por facções criminosas. E vendo morrer outras milhares de pessoas todos os anos – a maioria, moradoras de áreas pobres, policiais ou traficantes. Ou seja, gente considerada dispensável. Ao mesmo tempo, vamos mantendo a indústria do medo em curso e promovendo o controle de determinadas classes sociais através da justificativa de conter a violência.

Enquanto as taxas de resolução de homicídios não chegam a 10%, a população carcerária brasileira cresceu mais do que em qualquer país por conta da "guerra às drogas". O Brasil não é o país da impunidade, afinal a polícia mata e prende – e há pessoas que ainda acham que temos que matar mais. A questão é a seletividade. Porque se considerarmos que o sistema existe para jogar pobre e favelado em um depósito de gente, até que tem funcionado muito bem.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.