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Leonardo Sakamoto

Após chantagear e distorcer, governo apela à cara de pau pela Previdência

Leonardo Sakamoto

11/12/2017 14h08

Carlos Marun (PMDB-MS), indicado para ser o novo ministro-chefe da articulação política do governo Temer Foto: Sérgio Lima/Poder 360

Ao ver o deputado federal Carlos Marun (PMDB-MS), indicado para articulador político do governo Temer, falando sobre a importância de se combater privilégios, imaginei – por um momento – que alguém havia contaminado a água com alucinógenos poderosos. A minha ou a dele.

Depois de adotar a chantagem como instrumento de convencimento político (só faltou dizer que ou esta Reforma da Previdência é aprovada ou ETs invadirão o planeta) e de realizar campanhas de propaganda pagas com dinheiro público que distorciam fatos, essa abordagem pode ser indício de que o governo Michel Temer resolveu adotar uma nova tática para aprovar a Reforma da Previdência: a cara de pau.

Não importa que a realidade mostre cotidianamente que o símbolo do privilégio no país é a forma com a qual parte da classe política age em nome de si mesma e de seus representados, entre eles grandes empresários, grandes produtores rurais e grandes operadores do mercado financeiro. O que importa é que líderes do governo e seus aliados vão chamar maçã de goiaba. Ou seja, chamarão os direitos dos mais vulneráveis de… privilégios. Porque querem, porque podem, porque a população não mexe músculo contra isso. Mesmo que todo mundo veja que se trata de maçã, mesmo que a situação acabe sendo extremamente ridícula. E com a ajuda de milhões gastos em comunicação, quem divergir disso é vendido como burro, louco ou um inconsequente que não se preocupa com o futuro do país.

O governo cita a questão dos servidores públicos para justificar a mudança, como se todos fossem marajás e não explicando que os novos ingressantes do serviço público já receberão, como teto, ao se aposentar, o mesmo valor que os pensionistas do regime geral.

E quando confrontado que a proposta irá atingir sim os vulneráveis, ele se faz de doido, dizendo que essa interpretação está equivocada. Por exemplo, quando alguém lembra que a reforma irá dificultar a aposentadoria do trabalhador rural da economia familiar, obrigando-o a contribuir mensalmente, ao contrário do recolhimento no momento da produção, como é hoje. E reduzir a pensão dos trabalhadores urbanos que hoje se aposentam por idade mínima e 15 anos de contribuição de 85% do valor integral para 60%

Não creio que o trabalhador rural ou o assalariado da classe média baixa sejam privilegiados no país. Por outro lado, parlamentares lutaram para manter suas aposentadorias especiais, que os diferenciam da maioria dos demais mortais.

Carlos Marun disse que a Previdência é uma Robin Hood às avessas. É fascinante como ele acusa o sistema de algo que ele e seus colegas cometem diariamente. E é lindo como, lustrado em óleo de peroba, mostra ignorar que o sistema tributário no Brasil é que tira dos pobres para dar aos ricos.

Se o Brasil realmente quisesse combater privilégios, teria taxado em 15% os gordos dividendos recebidos por ricos cidadãos de suas grandes empresas – coisa que não foi feita por este ou qualquer outro governo. Ou criado alíquotas de 35% e 40%, no Imposto de Renda, para altíssimos salários. Hoje, a classe média paga, relativamente, mais impostos que os muito ricos. Ou, ainda, teria tirado isenções e aumentado a taxação sobre produtos consumidos pelos ricos e retirado impostos sobre aqueles que abastecem os mais pobres.

Isso sem contar que o Congresso Nacional ajudou o governo Temer a aprovar uma série de medidas anticrise que causaram impactos negativos à vida dos trabalhadores e das populações mais vulneráveis. Por exemplo, a imposição de um limite para os gastos públicos em áreas como educação e saúde, o que deve reduzir sua qualidade. Ou a redução de proteções à saúde e segurança dos trabalhadores através da aprovação da Lei da Terceirização Ampla e da Reforma Trabalhista. Mas nada de avançar sobre os mais ricos. Afinal, não foi isso o combinado com o poder econômico no momento do impeachment.

Marun é líder da tropa de choque de Michel Temer na Câmara, relator da CPMI da JBS e amigão de Eduardo Cunha – tendo visitado o ex-presidente da Câmara dos Deputados na prisão em Curitiba usando dinheiro do contribuinte. Confunde o público com o privado, tendo feito de seu cargo um trampolim para interesses pessoais. Agora, como ministro-chefe da Secretaria de Governo, deve ampliar o mercado a céu aberto em que se transformou a relação entre o Executivo e o Legislativo.

O que me traz de volta à tese da contaminação da água com alucinógenos.

Pois nem em nossos maiores delírios poderíamos imaginar que um grupo de políticos que sempre agiram como se estivessem acima de nós teria a coragem de dizer à sociedade que grandes reformas que dificultam ainda mais a vida são, na verdade, combate aos privilégios.

Que tipo de droga é essa que estão distribuindo para a gente que não dá barato, só ressaca?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.