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Leonardo Sakamoto

No Rio, morte de pobre e de policial não vale o arranhão de bater panela

Leonardo Sakamoto

18/12/2017 12h28

Cinco jovens foram mortos por policiais no carro em que estavam em Costa Barros, subúrbio do Rio, em novembro de 2015. Voltavam de uma lanchonete e levaram 111 tiros. Foto: Christophe Simon / AFP

Pelo menos 1035 pessoas foram mortas pela polícia carioca de janeiro a novembro deste ano. Enquanto isso, 129 policiais militares foram assassinados até esta segunda (18) – 27 deles em serviço e os demais quando estavam de folga. Os dados publicados por Paula Bianchi, do UOL, compõem o retrato de um Estado falido.

Apesar do número de mortos, o problema não é recente, nem conjuntural, muito menos fruto apenas da crise econômica nacional – com quer fazer crer o ex-governador em exercício, Luiz Fernando Pezão. O Rio paga o preço de uma falência institucional pela qual o PMDB, grupo ao qual ele pertence, tem grande responsabilidade. Do ponto de vista econômico, através da adoção de medidas de desoneração e subsídios em benefício de empresas que ajudaram a quebrar o Estado. Isso sem contar a corrupção, que levou seus antecessores, Sérgio Cabral e Anthony Garotinho ao xilindró. Agora, na maior cara de pau, culpam as aposentadorias de professores, policiais e servidores públicos pela situação.

Um governo estadual sem aprovação e sem legitimidade dá lugar a um vazio. Como poder não admite vácuo, a lacuna é rapidamente preenchida por outras forças – sejam elas policiais, criminosas, milicianas. Daí, sem controle, o Rio se aprofunda no caos.

Mas, como já escrevi aqui, o Estado também pagando um preço por conta da manutenção de uma política falida de "guerra às drogas", mantida por sucessivos governos, inclusive o atual. Em nome de combater o comércio ilegal de psicoativos, estabeleceu-se as bases para a violência armada organizada na capital carioca – que não serão alteradas até que mude a própria política para drogas.

As maiores batalhas do tráfico acontecem longe dos olhos da classe média e alta, uma vez que a imensa maioria dos corpos contabilizados é de jovens, negros, pobres, que se matam na conquista de territórios para venda de drogas, pelas leis do tráfico e pelas mãos da polícia e das milícias. Os mais ricos sentem a violência, mas o que chega neles não é nem de perto o que os mais pobres são obrigados a viver no dia a dia.

Ao mesmo tempo, policiais honestos são vítimas da violência do tráfico, das milícias, dos policiais desonestos e do preconceito de uma parte da população que espera que cumpram o papel de capitães do mato. A maioria esmagadora das mortes não são de agentes de segurança em serviço. Os policiais morrem porque são descobertos com armas ou identidade policial em assaltos, mas tudo começa porque são vítimas de assaltos no bairro pobre onde moram. Como a maioria da população.

Considerando que policiais, comunidade e traficantes são de uma mesma origem social e, não raro, da mesma cor de pele, é uma batalha interna. E muita gente torce não para resolver o problema em definitivo, mas para que os conflitos voltem a ser contidos naquele território, gerando falsa sensação de segurança na parte "civilizada" da cidade.

Não há saída para a violência armada organizada no Rio de Janeiro que não passe pela discussão da legalização das drogas, que serve apenas para controle político e a fim de fortalecer grupos de poder locais e o tráfico de armas. Por aqui, infelizmente, ainda se discute de forma ridícula qual o tamanho do porte de maconha que pode dar cadeia.

Essa "guerra às drogas" está matando milhares de pessoas todos os anos, moradores e policiais, ou seja, gente considerada dispensável. E, ao mesmo tempo, mantemos  a indústria do medo em curso para controlar determinadas classes sociais através da justificativa de conter a violência. Não há solução possível enquanto o governo carioca não for até as comunidades mais pobres e participar dos debates que vêm sendo puxados por elas, sobre as soluções para a violência na disputa de territórios controlados pelo crime organizado.

Sem demérito para outras pautas sociais e políticas, esses números também seriam razão mais do que suficiente para ocuparmos as ruas das grandes cidades em protesto. E, de forma racional, pedindo ações estruturais que melhorem a qualidade de vida aos mais jovens, garantam justiça social, desmilitarizem as forças policiais e valorizem o trabalho dos bons agentes, entre outras medidas preventivas. E não adotando saídas fáceis e bizarras, como colocar crianças nas cadeias. Mas os corpos que tombam no Rio, pelo visto, não valem o arranhão deixado em uma panela batida em protesto.

 

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.