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Leonardo Sakamoto

Na Alemanha, pede-se redução de jornada. No Brasil, libertação de escravos

Leonardo Sakamoto

15/01/2018 13h01

Trabalhadores alemães da IG Metall demandam um equilíbrio melhor entre trabalho e vida privada. Foto: IG Metall/Flickr

O sindicato alemão que representa os trabalhadores da indústria metalúrgica, entre outras categorias, está propondo a redução na jornada semanal de trabalho para 28 horas semanais, por quatro dias, sem redução salarial.

Isso seria opcional e por um período de dois anos para que os trabalhadores pudessem se dedicar à vida pessoal. Atualmente a jornada dos filiados à IG Metall, um dos sindicatos mais importantes da Europa, é de 35 horas. Ele conta com mais de dois milhões de membros.

Em consulta às suas bases em meio à discussão da negociação coletiva, a IG Metall concluiu que elas querem também algo mais intangível, mas não menos precioso do que apenas o aumento salarial: tempo. Tempo para cuidar da família e de si mesmos.

Qual a origem dessa reivindicação? A Alemanha não tem um exército de pessoas precarizadas para cuidar dos mais novos e dos mais velhos tão representativo quanto o do Brasil. A classe média (maioria no país) em idade economicamente ativa tem que se desdobrar, portanto, para dar atenção aos filhos e aos pais, mesmo com toda a estrutura de proteção social existente. Não que esse contingente precarizado não exista por lá, claro. As reformas liberais, que se iniciaram há duas décadas na Alemanha, ajudaram a ampliar a camada de pessoas com menos direitos trabalhistas e sem vínculos empregatícios ou com relações de curto prazo. E, entre as categorias atingidas, estão funções com baixa especialização e baixa remuneração.

Primeiro, é importante entender quem é o público da IG Metall. A reconstrução alemã no pós-Segunda Guerra ocorreu ancorado por indústrias, como a automobilística. A organização desse operariado e, consequentemente, as lutas para a garantia de seus direitos estão diretamente relacionadas ao próprio crescimento do país e ao fortalecimento da classe média. Sim, o contrato de um operário, em média, conta com mais direitos do que o de um professor ou pesquisador universitários de instituições públicas – lembrando que o próprio Estado é um patrão que precariza mão de obra.

Se por um lado, os acordos entre patrões e empregados ditam as regras na Alemanha, por outro, o poder de sindicatos como IG Metall é muito superior aos daqui. Metalúrgicos e mineiros conquistaram, há meio século, o direito de participar nas decisões internas da empresa, o que faz com que demissões tenham que ser bem mais discutidas antes de realizadas. E eles têm assento nos conselhos de administração, com poder efetivo para definir investimentos, vetar ações e decidir os rumos da companhia. Parte da resposta pela saída da Alemanha da crise econômica global no ano passado está na negociação entre patrões e empregados.

Mas, se em momentos de dificuldade, empregados podem ceder para garantir empregos, patrões também são obrigados a a fazer o mesmo. E em tempos de crescimento econômico, as reivindicações podem incluir mais do que salário. Ou seja, o direito ao tempo.

Sem contar que o direito à greve é respeitado por grande parte da população. Pois sabem que isso é um recurso legítimo para categorias se fazerem ouvidas. Afinal, hoje é com os maquinistas de trem, amanhã com operários e, depois, pode ser com eles próprios. No Brasil, além da aversão que parte da classe média tem à ideia de greve, agindo como guerreiro do capital alheio e sem pensar nos trabalhadores, a conquista de direitos em períodos de crescimento econômico é bastante limitado.

Paralisação de trabalhadores ligados à IG Metall. Foto: IG Metall/ Flickr

Redução de jornada no Brasil – Por exemplo, o debate para redução da jornada de trabalho de 44 horas semanais para 40 horas foi atacado duramente no debate público durante o último ciclo de crescimento do país, no início desta década.

A última redução ocorreu há 30 anos, na Constituição de 1988, quando caiu de 48 para 44 horas semanais. O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) calculou que uma jornada de 40 horas com manutenção de salário aumentaria os custos de produção em apenas 1,99%. O aumento na qualidade de vida do trabalhador, por outro lado, seria muito maior: mais tempo com a família, mais tempo para o lazer e o descanso, mais tempo para formação pessoal.

A Proposta de Emenda Constitucional 231/1995, que traz essa mudança, também aumenta de 50% para 75% o valor a ser acrescido na remuneração das horas extras. A PEC está pronta para ser colocada em votação no plenário da Câmara dos Deputados, o que não deve ocorrer tão cedo.

Claro que boa parte das empresas já opera com o chamado oito horas por dia, cinco dias por semana, ou com parte da carga horária sendo realizada aos sábados. Mas não são todas. Principalmente em atividades rurais.

Com o progresso tecnológico, uma quantidade sempre crescente de meios de produção pode ser acionada por uma quantidade relativa cada vez menor de força de trabalho. Como consequência, um número maior de mercadorias pode ser produzida com uma quantidade menor de horas de trabalho. Em muitos países, a redução da quantidade de horas trabalhadas com a manutenção do salário é uma reivindicação sempre presente. Por aqui, é chamada de irresponsabilidade. Enquanto isso, buscamos aumentar a produtividade através da superexploração do trabalho ao invés de investir pesado na melhoria da formação da mão de obra.

Na crise de 2008 no Brasil, os balanços econômicos de muitas grandes empresas mostravam que não havia necessidade de se aplicar um remédio tão amargo quanto a redução de jornada com redução de salário, uma vez que várias delas ganharam muito nos anos anteriores. Mesmo assim, tentaram mostrar a necessidade desse amargor. Algumas queriam simplesmente embolsar a diferença do ganho de produtividade e mandar para suas matrizes no exterior.

Sindicatos fortes para livre negociação – Como já escrevi aqui em vários textos, não sou contra o fim do imposto sindical, nem adversário da livre negociação. Desde que tivéssemos, antes, fortalecido os bons sindicatos e tornado a vida dos picaretas insustentável, de forma a garantir real poder de negociação diante das empresas.

Por exemplo, o Brasil deveria ter votado o fim da unicidade sindical. Hoje, apenas um sindicato representa uma categoria por região. Mas o trabalhador tem o direito de escolher quem o represente e não aceitar que, no seu município o sindicato de sua categoria seja de fachada, montado para que alguns diretores ganhem dinheiro e os patrões se divirtam.

Também deveríamos ter aprovado uma mudança para que, em negociações coletivas, estarem envolvidos os representantes de empregados e empregadores de todas as atividades de uma mesma cadeia de valor. Um mesmo sindicato poderia representar todos eles, por exemplo. E os ganhos que valerem para os empregados diretamente contratados valeriam também para os terceirizados, os temporários e os empregados dos fornecedores do mesmo ramo.

Ou seja, para que a livre negociação funcione é preciso que seja respeitado um patamar mínimo de regras, definido em lei, a fim de garantir a saúde, a segurança e a dignidade do trabalhador. E, para chegarmos a esse patamar mínimo, uma grande discussão pública seria necessária, ao contrário de passar um rolo compressor como fez o Palácio do Planalto e o Congresso Nacional na aprovação da Reforma Trabalhista.

Voltemos à informação do início deste texto. Se a IG Metall conseguirá ou não o seu intento, não se sabe. Mas o desejo de seus filiados está posto e está nos debates da esfera pública.

O que chama a atenção é que enquanto os sindicatos de lá conseguem propor essa discussão, nós aqui passamos parte do ano passado lutando para que o governo federal não alterasse as regras que norteiam o combate à escravidão contemporânea, dificultando a libertação de pessoas.

Fiscalização do Ministério do Trabalho resgata trabalhadores em situação análoga à de escravo no Pará. Foto: Leonardo Sakamoto

Por aqui, trabalho escravo – No dia 16 de outubro, o Ministério do Trabalho publicou uma portaria afirmando que, para efeitos de fiscalização, trabalho escravo depende de flagrante de cárcere privado. Ou seja, as condições de trabalho e de jornada, por piores que fossem, não seriam considerados para configurar esse crime.

A reação da sociedade civil, da maioria da imprensa, de magistrados e procuradores, do Ministério Público Federal e do Ministério Público do Trabalho, das Nações Unidas e mesmo de grandes empresas nacionais e de investidores e compradores internacionais foi imensa. O Supremo Tribunal Federal acabou por suspender a medida e o governo, no dia 29 de dezembro, publicou nova portaria, devolvendo os parâmetros de resgate de pessoas ao que era antes.

O debate deve continuar, agora, no Congresso, onde ruralistas e representantes de grandes empresas de construção civil querem os critérios de sua portaria-amiga de volta.

Claro que os metalúrgicos alemães têm uma longa história de luta para garantir parâmetros mínimos de qualidade de vida. E, além do mais, estamos falando de um dos países mais ricos e industrialmente desenvolvidos.

E a exploração do trabalhador é internacional, claro. Vale lembrar Volkswagen colaborou com o aparelho de repressão da ditadura militar brasileira, tornando a vida de operários em fábricas daqui um inferno. Mas a luta contar ela também é. Afinal, a solidariedade entre os movimentos sindical brasileiro e o alemão tiveram grande importância no processo de redemocratização do país nos anos 80.

Os dois países têm uma história diferente de lutas sociais. Mas o que choca é o abismo que separa ambos debates públicos.

Do lado de lá, redução de jornada de 35 para 28 para metalúrgicos poderem cuidar de sua famílias. Do lado de cá, protestos para que o Estado não pare de libertar pessoas escravizadas.

Particularmente, eu aceitaria feliz uma troca com eles nesse tema se o custo para tanto fosse levar um 7 a 1 no futebol todos os dias.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.