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Leonardo Sakamoto

O que o vídeo de Cristiane Brasil e o tuíte de Marcelo Bretas têm em comum?

Leonardo Sakamoto

29/01/2018 19h53

"Todo mundo tem direito de pedir qualquer coisa na Justiça. Todo mundo pode pedir qualquer coisa abstrata. O negócio é o seguinte: quem é que tem direito?" A declaração é da deputada federal Cristiane Brasil (PTB-RJ) e foi extraída de um vídeo pitoresco que viralizou nas redes sociais nesta segunda (29).

Tratarei desse depoimento mais para frente. Porque esse comentário, fora de seu contexto, cabe como uma luva para outro caso que também se tornou um dos temas do dia.

Após resolução do Conselho Nacional de Justiça afirmar que casais que vivem sob o mesmo teto não devem acumular auxílio-moradia, o juiz Marcelo Bretas, responsável pela Lava Jato no Rio de Janeiro, ganhou ação judicial garantindo que ele e sua esposa – também juíza – recebam o benefício dobrado.

Bretas respondeu ao Painel da Folha de S.Paulo – que publicou essa informação nesta segunda (29) – em sua conta no Twitter. "Pois é, tenho esse "estranho" hábito. Sempre que penso ter direito a algo eu VOU À JUSTIÇA e peço. Talvez devesse ficar chorando num canto [emoticon de choro], ou pegar escondido ou à força. Mas, como tenho medo [emoticon de riso] de merecer algum castigo, peço na Justiça o meu direito."

O magistrado tem prestado um relevante serviço à sociedade através de decisões envolvendo políticos graúdos e grandes empresários em casos de corrupção e lavagem de dinheiro. Isso, contudo, não lhe torna imune a críticas.

A questão principal aqui não deveria ser ele ter direito ou não a reivindicar o benefício. Mas sim se um casal de juízes deve pleitear auxílio-moradia dobrado em um país com um gritante déficit habitacional, tanto quantitativo quanto qualitativo. Onde milhares de pessoas dormem na rua por falta de dinheiro para alugar um quarto e outras tantas levam bomba e borrachada da polícia para que desocupem prédios e terrenos que antes serviam de moradia para a especulação imobiliária.

Partindo do pressuposto que o magistrado é uma pessoa inteligente, provido da capacidade de sentir de empatia por seus semelhantes e entende que o Estado tem recursos limitados para executar políticas públicas, a questão é outra: é ético alguém solicitar esse suposto direito?

O debate é, portanto, anterior ao que a lei oferece ou deixa de oferecer. Trata, por exemplo, do quanto a falta de reflexão dos mais abastados sobre a realidade cotidiana não impede a melhoria da vida dos mais pobres.

Voltemos à Cristiane Brasil. Indicada por Michel Temer para ministra do Trabalho, ela teve a posse suspensa por uma decisão da Justiça Federal, que vem sendo confirmada – apesar dos recursos por parte do governo. A justificativa foram condenações trabalhistas que ela sofreu de dois ex-motoristas.

No vídeo, gravado em uma lancha no mar, ela aparece ao lado de quatro homens. Entre eles, ao que indica, há empresários que a apoiam. Colocando-se no papel de vítima, Cristiane completa a declaração do inicio deste texto: "Todo mundo tem direito de pedir qualquer coisa na Justiça. Todo mundo pode pedir qualquer coisa abstrata. O negócio é o seguinte: quem é que tem direito? Ainda mais na Justiça do Trabalho. Eu juro para vocês que não achava que tinha nada para dever a essas duas pessoas que entraram contra mim e vou provar isso em breve".

Ao final, conclui o vídeo questionando: "O que pode passar na cabeça das pessoas que entram contra a gente em ações trabalhistas?"

Neste caso, suponho que as pessoas pensavam em buscar aquilo que acreditavam ter sido negado por ela, como empregadora, na relação de venda de sua força de trabalho. Em um dos casos, ela não assinou a carteira, nem pagou direitos trabalhistas básicos a um motorista que a acusou de jornadas de 15 horas diárias entre 2011 e 2014, por exemplo. Não deixa de ser intrigante como uma parlamentar que defende com unhas e dentes o seu direito a ser indicada a um cargo de ministra desconhece tão completamente as regras do contrato trabalhista a serem protegidas pelo cargo que deseja.

Não acredito, portanto, que tenha sido apenas "uma manifestação espontânea de um amigo, utilizada fora do contexto", como ela afirmou em nota depois, mas uma reafirmação da ordem das coisas ocorrida em um momento de descontração e sinceridade.

Apesar do direito à moradia estar previsto no artigo 6o da Constituição Federal e os direitos trabalhistas mais básicos, no artigo 7o, há um abismo entre o que está escrito na lei e sua efetivação, pelo menos se você não faz parte dos estamentos mais altos das pirâmides política e econômica do país. Ou seja, se você não tem poder, nem dinheiro.

Por mais que eu concorde com o argumento do governo, de que condenações trabalhistas não são base legal suficiente para bloquear a indicação de Cristiane Brasil, há um lapso de ética em uma ministra do Trabalho ter sido condenada por negar o básico aos seus empregados que deveria ter sido considerado pelo Palácio do Planalto. E, pelas declarações no vídeo, não parece haver sinal algum de reflexão da parte dela sobre os erros que cometeu. O que poderia mostrar sua capacidade de mediar os conflitos e processos entre governos, empregadores e trabalhadores.

Nos dois casos que ganharam destaque nesta segunda (29), o juiz e a deputada sabem bem a posição privilegiada em que estão, mas parecem não se importar em dar exemplos à mesma sociedade que, com muito sacrifício, garante sua subsistência. O comportamento de agentes públicos do nível de ambos não deveria ser limitado apenas àquilo que a lei afirma, mas ir além. Mesmo que uma interpretação da lei permita dobrar o auxílio-moradia. Mesmo que o desrespeito aos direitos trabalhistas não leve ninguém para a cadeia.

"O negócio é o seguinte: quem é que tem direito?" Respondendo à pergunta da nobre deputada, a senhora tem. E o nobre juiz, também.

E a xepa? A xepa que espere na fila.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.