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Leonardo Sakamoto

Tenho pena de soldado pobre do Rio manipulado no cálculo eleitoral de Temer

Leonardo Sakamoto

07/03/2018 09h27

Moradores observam Forças Armadas no complexo do Chapadão, no Rio. Foto: Danilo Verpa/Folhapress

Militares retornaram à comunidade da Vila Kennedy, no Rio de Janeiro, nesta quarta (7), para destruir barricadas erguidas por facções criminosas. Novamente.

Sim, a sensação de déjà vu (ou de falha da Matrix, como queiram) será um dos sentimentos mais presentes enquanto durar a intervenção das Forças Armadas, com a mesma cena, em loop, se repetindo à exaustão. Certas comunidades pobres no Rio estarão presas em um longo Dia da Marmota até o final do ano.

Até porque, como repetimos exaustivamente por aqui, não se vence o crime organizado apenas com armas, mas com uma mudança sustentável da realidade local e das atuais políticas antidrogas que beneficiam o tráfico.

O problema é que essas persistentes e repetidas incursões de militares nas comunidades não atingem apenas criminosos, mas toda a população. Ou seja, a cada volta que se repete, mais moradores inocentes sofrem uma bordoada.

Que comentaristas da internet com problemas cognitivos graves não reconheçam isso e afirmem que "quem vai sofrer com a intervenção são apenas os bandidos", faz parte da vida. Afinal, toda sociedade tem sua cruz para carregar.

Agora, quando o Estado – que se faz de tonto, mas não é burro – faz de conta que isso não está acontecendo já é sintoma de degradação democrática em nível avançado.

Vale lembrar que a Vila Kennedy foi a mesma em que as Forças Armadas instalaram um "posto de fronteira", obrigando as pessoas que deixavam a comunidade a serem fotografadas antes de poderem entrar no Rio de Janeiro. Mais claro indício de que aqueles punhados de pobres não são vistos como cidadãos brasileiros é impossível.

A Guerra de Temer já se mostrou capaz de desenvolver formas criativas de subverter a dignidade alheia. Mas tanto a primeira entrevista coletiva dos interventores (se é que aquela peça de teatro mal ensaiada e que primou pela censura pode ser considerada uma coletiva) ou mesmo suas esporádicas declarações à imprensa não mostraram como as Forças Armadas pretendem cumprir a missão maluca que receberam.

Falam superficialmente em combater a banda podre da polícia. Louvável e importante. Mas é bem provável, aliás, que no intuito de combater a corrupção policial, ocorra o contrário: os militares sejam envolvidos em mais "esquemas", como aconteceu em intervenção similar no México.

Tenho pena dos soldados do Exército que ganham uma miséria, não foram treinados para policiamento em seu próprio país e vão colocar suas vidas e as de seus familiares em risco (uma vez que muitos moram em comunidades pobres da capital carioca) por conta de um cálculo eleitoral de Temer.

Como foi parida sem planejamento, jogando as Forças Armadas na fogueira e sem pensar em uma ligação com políticas voltadas à geração de oportunidades nas comunidades pobres, a intervenção federal na área de segurança pública no Rio de Janeiro pode até vir a produzir algum resultado positivo ao governo federal. Mas não trará nada de bom que seja duradouro.

Isso envolveria um processo de reurbanização dessas comunidades e a transformação de vielas estreitas e moradias precárias em ruas e casas. E, principalmente, uma ocupação eficaz por parte do Estado – através de equipamentos e serviços de educação, saúde, lazer, cultura, esporte. Isso sem contar a criação de um trabalho de policiamento que seja pensado em conjunto com a comunidade, um serviço de inteligência para impedir que armas cheguem até ela e a mudança dos pressupostos da Guerra às Drogas – o fim do proibicionismo seria uma porrada na sustentação financeira do crime organizado.

Até lá, temos uma tarefa importante, além de monitorar e denunciar abusos. Qual nome dar à intervenção? Operação Fogo de Palha ou Operação Guardanapo de Boteco – que espalha a sujeira, mas não limpa?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.