Topo

Leonardo Sakamoto

Se o Rio é "laboratório", o que são seus moradores? Cobaias?

Leonardo Sakamoto

12/03/2018 13h18

Foto: Ricardo Moraes/Reuters

Quando o general Walter Braga Netto, interventor federal na área de segurança pública do Rio de Janeiro, afirma que a Vila Kennedy é um "laboratório", uma luz amarela acende.

A comunidade pobre da Zona Oeste da capital carioca vem sendo palco de operações militares desde que Michel Temer entregou o comando do combate à violência no Estado às Forças Armadas, transformando Luiz Fernando Pezão em um ex-governador em exercício.

Acostumada a sofrer nas mãos de traficantes ligados a um das grandes facções criminosas que operam no Rio, os moradores da Vila Kennedy tiveram a dignidade também atingida pela intervenção. Quando ela mesma estabeleceu "postos de controle", exigindo que centenas fossem fotografados para vistoria ao saírem de sua comunidade. Ou quando abriu caminho para que a Prefeitura derrubasse quiosques de ambulantes sem aviso prévio.

Se a Vila Kennedy ou mesmo o Rio são laboratórios, o que são as pessoas que vivem lá? Cobaias?

Ao invés de testar soluções para o combate à criminalidade em um bairro pobre, em que erros significam mais sofrimento a um povo já ferrado e esquecido, o governo federal deveria ter se planejado com antecedência.

Um planejamento que considerasse exemplos locais (como a fracassada ocupação na favela da Maré pelas Forças Armadas) e globais (o aumento da corrupção no Exército após intervenção semelhante no México), mas também o conhecimento de especialistas que estudam há décadas a situação e contasse com a participação da população diretamente afetada, teria mais chance de dar certo.

Isso, é claro, se o objetivo do governo fosse resolver de forma sustentável a situação e não garantir popularidade e votos.

Quando assinou o decreto da intervenção, em 16 de fevereiro, Temer afirmou que o crime organizado "é uma metástase que se espalha pelo país e ameaça a tranquilidade do nosso povo".

Metástase. Laboratório. O ato de usar metáforas de doenças para a violência nunca é aleatório.

Qual o impedimento para que o "remédio" desenvolvido para tratar o mal que "quase tomou conta do Rio de Janeiro", nas palavras de Temer, possa ser aplicado em todo o país? Mesmo que ele não tenha "curado" ninguém, o espetáculo do placebo pode ser útil para suprir o desejo da população de ver algo acontecendo. No limite, se tudo correr bem, terá o efeito de um paliativo ou um antitérmico. Contudo, a doença seguirá lá, empurrada com a barriga por charlatães que ocupam os altos postos da República, para a tristeza do paciente. Isso sem contar que o remédio inapropriado pode levar outras partes do corpo à falência. Como as instituições.

Dado o sentimento de insegurança e do descrédito com a política tradicional, a ideia simplista e perigosa de que "os militares são a cura" trazida pelo aumento da sensação de segurança pode se alastrar. O povo cansado tende a acreditar em qualquer tratamento que prometa resolver o problema, mesmo aqueles que tragam soluções mágicas.

Se temos uma "doença", provavelmente, ela é autoimune, com o Estado atacando sua própria sociedade através de corrupção, incompetência, ignorância e má fé.

Uma "cura" sustentável passaria por um processo de reurbanização dessas comunidades e a transformação de vielas estreitas e moradias precárias em ruas e casas. E, principalmente, uma ocupação eficaz por parte do Estado – através de equipamentos e serviços de educação, saúde, lazer, cultura, esporte. Isso sem contar a criação de um trabalho de policiamento que seja pensado em conjunto com a comunidade, a melhoria de salários e condições de trabalho da polícia, um serviço de inteligência para impedir que armas cheguem e a mudança dos pressupostos da Guerra às Drogas – o fim do proibicionismo seria uma porrada na sustentação financeira do crime organizado.

Na mesma entrevista, o próprio general Braga Netto reconhece que a "segurança pública é uma demanda que não se resolve apenas com ação policial". E para o povo que defende a porrada como saída, foi bem específico: é necessária a "adoção de outras iniciativas por parte de setores do governo e da sociedade, como projetos de inclusão social e oferta de serviços públicos". Infelizmente, a força bruta chegou antes da política pública.

O diagnóstico é conhecido, bem como o tratamento. A pergunta é: interessa a quem que continuemos doentes?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.