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Leonardo Sakamoto

Execução de Marielle: Percepção de culpa do Estado mostra falência do país

Leonardo Sakamoto

17/03/2018 11h00

Foto: Mídia Ninja

Tão assustador quanto a execução planejada de uma das vereadoras mais votadas de nossa segunda maior cidade e vitrine do país no exterior é o fato de que, logo após seu assassinato, parte considerável da população apontou espontaneamente agentes das forças públicas de segurança para o rol de suspeitos.

Ou seja, vivemos em um país em que o povo tem a percepção de que parte daqueles que juraram garantir sua dignidade e proteção são os mesmos que colocam em risco sua vida e matam de forma desnecessária. Um lugar em que há os bandidos, os mocinhos que são mocinhos e os mocinhos que são bandidos – sejam eles corruptos ou milicianos. Os mocinhos que são mocinhos são mortos, aliás, tantos pelos bandidos quanto pelos mocinhos que são bandidos, que já controlam uma área maior que a dos traficantes no Rio.

Apenas uma investigação séria e transparente será capaz de apontar quem são os responsáveis pela crime cometido contra Marielle Franco, o motorista Anderson Gomes e a democracia. Nada pode ser descartado neste momento, por mais que procuradores e policiais comentem que o modus operandi não é o de facções criminosas – aqui não incluo magistrados, infelizmente, devido às violentas declarações de uma hater de rede social que disse ser desembargadora no Rio.

De qualquer forma, a percepção naturalizada de que agentes do Estado podem ser perpetradores de um assassinato político contra uma representante eleita e liderança social é um sinal inequívoco de falência do contrato social sobre o qual construímos a Nova República. Instituições não apenas são incapazes de garantir a paz, como alguns de seus membros lucram muito como vetores de perpetuação da guerra.

A polícia é sempre reflexo da política, não é um corpo diferente e independente. Considerando o nível de corrupção política estrutural no Rio (com o MDB carioca operando uma organização criminosa com tentáculos na esfera federal), seria muito difícil não ter uma polícia que passasse incólume. Isso não significa, contudo, que a corrupção envolva toda a corporação – generalização que interessa aos corruptos, que desejam que os honestos sejam jogados na vala comum em que eles estão.

Mas isso faz com que a população tenha dificuldade de saber com quem pode contar, uma vez que não há identificação nas fardas e carros ou aviso na frente dos batalhões sobre a idoneidade dos agentes de seguranças.

O ministro da Justiça Torquato Jardim produziu uma pérola ao tentar explicar a necessidade de garantir mais "segurança jurídica" às Forças Armadas no âmbito da intervenção federal na área de segurança pública no Rio: "Tem 1,1 milhão de cariocas morando em zonas de favelas, de perigo. Desse 1,1 milhão, como saber quem é do seu time e quem é contra? Não sabe. Você vê uma criança bonitinha, de 12 anos de idade, entrando em uma escola pública, não sabe o que ela vai fazer depois da escola".

É irônico, contudo, que a grotesca declaração do ministro possa ser usada, invertendo os papeis, para expor o drama dos moradores de periferias e morros no Rio, principalmente jovens negros. Como saber quais agentes das forças de segurança em um bairro dominado por milicianos ou sob influência de batalhões com atuação de corruptos "é do seu time e quem é contra"?

Não se sabe. E essa incerteza gera medo e desconfiança não só na polícia, mas em toda voz de autoridade e poder.

O Estado brasileiro, fomentando através de sua incompetência ou má fé o sentimento de impunidade ao longo do tempo, criou um ambiente em que as pessoas acreditam que é relativamente fácil e tranquilo assassinar uma conhecida liderança social e representante política. "Pode matar", é a mensagem enviada não apenas pelos Três Poderes do Rio como de outras partes do país diante da percepção de bagunça institucional. Ainda mais se a vítima é mulher, negra e de origem pobre.

Ao mesmo tempo, o recado que o país enviou à sua população e ao mundo é de que, além dos direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais, os mais pobres por aqui também não devem contar com direitos civis e políticos. Pois seus representantes são descartáveis e podem ser mortos tanto por sua atuação, quanto para servirem de recado. Afinal, o Rio tem dono e não é a população que nele habita.

As mortes de Marielle e Anderson reforçaram que o desprezo da população por seu governo, o temor por sua polícia e a desconfiança sobre sua Justiça – cuja velocidade depende, não raro, da classe social e cor de pele dos envolvidos e do nível de popularidade com o qual contam – têm sua razão de ser. Sob essas circunstâncias, fica difícil acreditar que, depois de uma noite escura, há sempre um amanhecer.

Independente do que aconteça, o Estado é culpado de tantas formas e maneiras pelo que aconteceu que é difícil enumerar no espaço de um post. Talvez a principal delas é a de permitir que a esperança de uma vida melhor seja ceifada logo que comece a incomodar.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.