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Leonardo Sakamoto

A ditadura segue viva na violência de milicianos e policiais corruptos

Leonardo Sakamoto

01/04/2018 17h01

Polícia encontra cemitério clandestino usado por milicianos no Rio de Janeiro em 2010. Foto: Luis Alvarenga/Infoglobo

O Brasil tem uma longa história com a tortura como instrumento de punição ou convencimento. Durante as sessões realizadas no 36o Distrito Policial (local que abrigou a Oban e, posteriormente, o DOI-Codi, na capital paulista), durante a ditadura militar, os vizinhos do bairro residencial do Paraíso reclamavam dos gritos de dor e desespero que brotavam de lá. As reclamações cessavam com rajadas de metralhadora disparadas para o alto, no pátio, deixando claro que aquilo continuaria até que o sistema decidisse parar. Mas o sistema nunca para por conta própria.

A tortura firmava-se como arma da disputa ideológica. Era necessário "quebrar" a pessoa, mentalmente e fisicamente, pelo que ela era, pelo que representava e pelo que defendia. Não era apenas um ser humano que morria a cada pancada. Era também uma visão de mundo. Os melhores carrascos são os psicopatas que gostam do que fazem. E se dedicam com afinco a descobrir novas formas de garantir o sofrimento humano. Muitos dos que fizeram o serviço sujo para a ditadura e passaram por aquele prédio amavam sua "profissão".

O Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) era integrado por membros do Exército, Marinha, Aeronáutica e policiais. E a metodologia desenvolvida durante esse período, junto à certeza do "tudo pode", continua provocando vítimas em outras delegacias espalhadas pelo país e nas periferias das grandes cidades, onde a vida vale muito pouco. A tortura é ferida não curada e, portanto, segue a toda sendo praticada por agentes do Estado.

Completamos, neste final de semana, 54 anos do golpe de 1964. Temos lidado com o passado como se ele tivesse automaticamente feito as pazes com o presente. Não, não fez. E o impacto de não resolvermos o nosso passado se faz sentir no dia a dia das periferias, em manifestações, nos grotões da zona rural, com o Estado aterrorizando, reprimindo e torturando parte da população (normalmente mais pobre) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica).

A ditadura militar é revivida não apenas quando inconsequentes – que usam sua liberdade de expressão contra a liberdade de expressão – vão às ruas pedir "intervenção militar constitucional", vulgo golpe. Mas também quando  alguém é torturado e morto pelas mãos do Estado ou de pessoas treinadas por ele. Ou seja, por policiais criminosos ou pela sua versão organizada, as milícias – minorias que ameaçam os agentes de segurança honestos que ficam encurralados entre os bandidos e os mocinhos-bandidos.

Milícias que, segundo o deputado estadual Marcel Freixo (PSOL-RJ), já controlam um território maior que o tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Ele, que presidiu as CPIs das armas e a das milícias, conta com escolta armadas por conta das ameaças que sofre. E ainda é obrigado a ouvir comentários de apoiadores de milicianos nas redes sociais para que, se tiver coragem, abra mão da segurança pessoal.

Em entrevista a este blog, ele havia apontado a questão das milícias formadas por policiais corruptos como um dos problemas que não serão resolvidos pela intervenção federal. "O Exército vai ocupar uma área de milícia no Rio de Janeiro? Não vai ter um miliciano para enfrentar o Exército. Porque boa parte das milícias estão dentro das forças policiais. Você só enfrenta a milícia se tirar o poder econômico deles, se tiver o serviço de inteligência que possa identificar quem das forças de segurança estão dentro dessas organizações criminosas."

O que dificilmente vai acontecer com o governo federal que está aí, mesmo com boa vontade das Forças Armadas.

Em meio a essa situação sombria, precisamos garantir que a história daquele período continue a ser contada nas escolas até entrarem nos ossos e vísceras de nossas crianças e adolescentes a fim de que nunca esqueçam que a liberdade do qual desfrutam hoje não foi de mão beijada. Mas custou o sangue, a carne e a saudade de muita gente.

Se ficarmos apenas assistindo boquiabertos aos retrocessos sociais, ambientais, econômicos, políticos e civis, o que é um pesadelo do passado voltará a ser nosso cotidiano por completo. Liderado por falsos "salvadores da pátria", que tentam ser eleitos nos braços de quem está cansado de tudo o que está aí. Inclusive da liberdade para procurar soluções de forma coletiva aos problemas da sociedade.

Muita gente tem orgasmos múltiplos quando vê corpos de jovens ligados ao tráfico ou não sangrando aqui e ali. Ou que amam qualquer tipo de execução sumária de pobre – sejam as feitas legalmente e "informalmente" pela mão do próprio do próprio Estado (ao caçar traficantes em morros cariocas ou na periferia da capital paulista), sejam as feitas pelas mãos da população (ao linchar suspeitos de crimes por turbas enfurecidas e idiotizadas).

Ninguém está defendendo bandido e criticando policiais, pelo contrário, a maioria honesta da polícia sofre com tudo isso tanto quanto o resto da população. O que está em jogo aqui é que tipo de Estado e de sociedade que estamos nos tornando. Como já disse aqui várias vezes por aqui: de vez em quando não sei de quem tenho mais medo: dos bandidos, dos "mocinhos" ou de nós mesmos.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.