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Leonardo Sakamoto

Manter Maluf preso, aos 86, demonstra nossa dupla falência como sociedade

Leonardo Sakamoto

11/04/2018 09h12

Maluf chega em casa para cumprir prisão domiciliar. Foto: Reprodução/TV Globo

Manter Paulo Maluf preso, aos 86 anos, demonstra que falhamos duplamente como sociedade. Preso em dezembro, ele conseguiu uma liminar, há duas semanas, para cumprir pena em seu domicílio. Essa decisão deve ser analisada, nesta quarta (11), pelo pleno do Supremo Tribunal Federal.

Primeiro, uma pessoa nessa idade não deveria ser submetida ao sistema prisional medieval que temos no país.

A deterioração rápida do quadro de saúde causado pelo envio de um idoso a um depósito de gente insalubre significa uma sentença de morte. E a pena capital só é prevista em território brasileiro em caso de guerra. Se a pessoa não representa perigo real para a integridade do restante da sociedade, não deveria ficar encarcerada a essa altura vida. No caso dele, prisão domiciliar com ou sem tornozeleira e cassação dos direitos políticos é mais digno e tem efeito semelhante.

Segundo, a prisão de Maluf, apenas em dezembro do ano passado, é um retrato de nossa incompetência em garantir a aplicação das leis e da seletividade do sistema de Justiça.

Toda pessoa deve ter ser seu direito à defesa respeitado, independentemente de ser rico ou pobre, esquerda ou direita, branco, negro ou indígena, de qual for sua orientação sexual e identidade de gênero. Mas não é o que acontece por aqui e o tempo do Judiciário – com raras exceções – opera a favor de quem tem mais para gastar com advogados.

O crime de lavagem de dinheiro do qual Maluf é acusado ocorreu há mais de 20 anos e o processo tem mais de 11. Para efeito de comparação, a denúncia sobre corrupção passiva e lavagem de dinheiro contra o ex-presidente Lula, envolvendo o triplex do Guarujá, ocorreu há pouco mais de dois anos e meio e ele já está preso. Como virou mantra entre alguns criminalistas, o processo de Maluf demorou demais e o de Lula correu mais rápido do que deveria. O Brasil realmente tem nojo do ponto de equilíbrio.

Mas, sejamos honestos, não é Justiça o que muitos perseguem neste caso, mas alguma espécie de sadismo decorrente do vislumbre das cenas de tortura contra aquele que é, de fato, um dos políticos mais corruptos e mentirosos da história deste país. Querem vê-lo sofrer da mesma forma que ele fez milhões sofrerem com seus desvios de recursos de São Paulo que poderiam ter sido usados para garantir qualidade de vida à população.

A esta altura, contudo, isso se chama vingança. Porque a vida não espera o Judiciário ser capaz de punir e segue seu curso. O Maluf de hoje é apenas uma sombra daquilo que foi há cinco, dez anos.

Parte do que ele mandou para fora em paraísos fiscais foi repatriado. Melhor seria nos dedicarmos a aprimorar mecanismos para que o Estado possa, nos próximos casos, impor multas multimilionárias, confiscando o patrimônio – tanto o que está em nome do réu quanto aquilo que foi transferido para o de familiares ou laranjas – e destinar à sociedade em compensação pelo dano que causaram. Hoje, a multa imposta a Maluf, de R$ 1,3 milhão, não faz nem cócegas.

Aliás, o Ministério Público havia responsabilizado o ex-prefeito por desvios de US$ 172 milhões, mas o ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin, relator do caso, ao rejeitar um recurso de Maluf, considerou desvios de apenas U$ 15 milhões devido à prescrição de parte dos crimes.

Reduzir alguém à condição análoga à de escravo (artigo 149 do Código Penal) prevê pena de dois a oito anos de prisão, mais agravantes. Mas é comum fazendeiros e outros empresários envolvidos se livrarem devido a artifícios legais, como estender os processos até a prescrição. Um instrumento mais eficaz foi proposto em 1995, que é o confisco de propriedades, rurais e urbanas onde esse crime ocorreu sem nenhuma indenização. A emenda constitucional que prevê isso demorou 19 anos para ser aprovada, passando por muita resistência.

Em meio aos intermináveis debates sobre essa PEC, um parlamentar ruralista chegou a defender que o criminoso fosse trancado e a chave da cela jogada fora, mas não se tocasse no patrimônio da família – que era, segundo ele, sagrado. O problema é que usa-se trabalho escravo no intuito de obter-se vantagens econômicas para gerar esse patrimônio e não por sadismo, sendo, nesse sentido, um crime muito parecido com corrupção. Se o país e suas leis dessem mais valor à liberdade ou à vida e não ao patrimônio, o peso das punições poderia ser diferente – o que traria mais resultados ao combate a esses crimes sem ferir a lógica.

Paulo Maluf é um dos grandes comunicadores da história do país. Calhou de ser um dos mais políticos mais desonestos também. Questionado sobre suas contas no exterior, que receberam milhões desviados dos cofres públicos de São Paulo, sempre repetiu por sua própria boca ou pela de seus assessores uma frase que se tornou icônica: "Paulo Maluf não tem nem nunca teve conta no exterior". Parecia rir dos repórteres, de si mesmo e do país ao fazer isso.

O Código de Processo Penal, artigo 318, inciso I, prevê a possibilidade de substituição da prisão preventiva por domiciliar no caso da pessoa ter mais de 80 anos e, o inciso II, de estar extremamente debilitada por motivo de doença grave. Seria o caso de Maluf, pois a complicação relacionada à metástase de um câncer são apenas uma de uma série de problemas de saúde, se não tivesse sido condenado em decisão transitada em julgado, ou seja. Mas decisões como a dele podem servir para avançarmos em autorizações, de caráter humanitário, até a mudança da lei.

Lógico que ele opera em um alto grau de teatralidade para tornar tudo mais intenso e escancarado. Mas nem precisaria ser tão canastrão, uma vez que sua condição já deveria ser suficiente para provar o quão sem sentido é manda-lo para a cadeia neste momento.

Hoje, diante de defensorias subdimensionadas há um déficit no direito de defesa dos idosos mais pobres. E quando eles conseguem, não raro os pedidos de prisão domiciliar são negados por juízes, desembargadores e ministros. Mutirões carcerários do Conselhos Nacional de Justiça têm um papel importante na identificação e encaminhamento dos casos graves, mas precisamos de uma política que seja contínua. Confirmando-se a decisão, o caso de Maluf deveria ser seguido de um levantamento nacional que pudesse ajudar os defensores a estender o benefício a outros condenados.

Tenho total desprezo pela figura de Maluf e o que ele representa. Mas desprezo ainda mais uma sociedade que acha que enviar um idoso doente de volta à cadeia é sinal de Justiça.

Não é. Tem cara de sociopatia. E deveria ser tratada. Com muita terapia em grupo. Até que, em um momento de lucidez, vejamos no espelho o monstro que estamos nos tornando.

Post atualizado às 11h50, do dia 11/04/2018, para correção da lei que trata da prisão domiciliar.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.