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Leonardo Sakamoto

O país elegeria um presidente negro? E político que dá declaração racista?

Leonardo Sakamoto

16/04/2018 11h38

Foto: Ruy Baron / Agência O Globo

Desconfio que é mais fácil para uma parte do Brasil engolir um candidato que dá repetidas declarações racistas, homofóbicas e machistas do que escolher um negro ou uma negra presidente.

A procuradora-geral da República Raquel Dodge denunciou Jair Bolsonaro ao Supremo Tribunal Federal por declarações discriminatórias e preconceituosas contra quilombolas, entre outros grupos, na última sexta (13).

Os eleitores que já o apoiam deixarão de votar nele por conta disso? Provavelmente, não. Aliás, uma parte da população (pequena, importante frisar) vota nele exatamente por isso. Uma outra releva esse lado "exagerado" e "fanfarrão" (como a ignomínia é chamada por alguns nas redes sociais) em nome da promessa de ordem e segurança no país dos 60 mil homicídios por ano. Por mais que sua principal proposta nessa área seja armar a população. Ou seja, cada um por si e a Taurus por todos.

Há um núcleo da candidatura de Bolsonaro com mais de 10% que diz seu nome em pesquisas espontâneas e fecha com ele mesmo que quebre o pescoço de um gatinho em praça pública e depois dê uma bicuda no cadáver. Foi assim quando Donald Trump, então candidato à Presidência dos Estados Unidos, foi acusado de violência sexual contra mulheres. Os escândalos que apareceram durante a campanha não foram capazes de retirar votos o suficiente para que perdesse a eleição. Não é culpa apenas de sites russos ou da Cambridge Analytica, ao contrário do que alguns querem fazer crer. Parte considerável dos eleitores acreditou em sua promessa de geração de empregos.

Não são poucos os analistas que afirmam que a intenção de voto de Bolsonaro de 17% no primeiro turno, segundo a pesquisa Datafolha, divulgada neste domingo (15), representa o teto do deputado federal. Desconfio que não seja tão simples, uma vez que nas sondagens de segundo turno, chega a alcançar 39%. Há um naco considerável de eleitores que aceita votar nele para derrotar um candidato do PT que não seja Lula. Digo isso porque o ex-presidente, hoje preso na Polícia Federal em Curitiba, jantaria Bolsonaro por 48 a 31.

A denúncia formalizada contra ele pela procuradora-geral da República Raquel Dodge, a meu ver, não tira votos consolidados, mas talvez contribua com o aumento à rejeição junto aos eleitores indecisos.

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A questão do racismo nas eleições tem um outro lado. O país, que nunca se libertou da Casa Grande, aceitaria um negro como presidente?

Independentemente do que eu ache de Joaquim Barbosa, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, recém-filiado ao PSB para disputar a Presidência da República, uma parte do Brasil profundo não o tolera pelo simples fato de ser negro. Um outro grupo até tolera, mas não como o principal cargo do país. É uma parte pequena da população, mas um termômetro do que nós temos de pior.

Claro que Barbosa, por conta de sua atuação no julgamento do Mensalão ou mesmo pelo fato de ter "vencido na vida" por conta própria, tende a crescer muito mais do que os 10 pontos que alcança, nos melhores cenários, da pesquisa Datafolha de ontem. E ser uma alternativa real ao centro. Mas comentários contra ele, daquele tipo que deveria estar se decompondo no lixo da História, transbordam de grupos neonazistas brasileiros e circulam em redes de extrema direita. Chegam a ser mais virulentos do que aqueles contrários à eleição de candidatos de origem nordestina.

É pouco provável que esse esgoto ganhe a luz do sol entre agosto e outubro porque seria rapidamente esterilizado pelo movimento negro, que tem encabeçado – junto ao movimento feminista – uma paulatina revolução cultural no país.

Mas certas coisas não precisam ganhar o debate público, correndo livremente no WhatsApp, rede social em que o ódio é blindado de interferências externas. Basta que sigam alimentando a existência de preconceitos em nosso dia a dia.

O pedaço de Brasil que aplaude comentários racistas de Jair Bolsonaro é o mesmo que espalha coisas impublicáveis contra a cor de pele de Joaquim Barbosa. Ambos podem ocupar o Palácio do Planalto a partir do ano que vem, sendo responsáveis pela efetivação das políticas de proteção às minorias em direitos.

Nos Estados Unidos, um país tão racista quando o nosso, os eventos em Charlottesville, no ano passado, com homens brancos carregando tochas e entoando palavras de ordem contra negros, migrantes, população LGBT e judeus, que culminaram na morte por atropelamento de uma manifestante antifacismo, causaram uma reação popular. Ela contou com a ajuda de Donald Trump que, através de catastróficas intervenções, tentou equiparar manifestantes racistas com aqueles que eram contra o discurso de ódio.

Executivos de grandes empresas que participavam de conselhos de Estado deixaram seus postos em protestos às declarações de Trump, que foi obrigado a dissolver essas instâncias sob o risco da humilhação de uma debandada geral. A população passou a questionar marcas das empresas com relação estreita com o governo norte-americano por conta do ocorrido. Ameaçavam com um dos mais fortes instrumentos da democracia liberal: o boicote. Capas de veículos de comunicação como a New Yorker, a Time e a Economist, esta última inglesa, mas com grande circulação nos EUA, afirmaram claramente que o país, sob Trump, estava ventilando grupos racistas e neonazistas. A maré negativa na mídia foi tão pesada que o presidente foi criticado até pela aliada e conservadora rede de televisão Fox News.

Se isso demonstra que a paciência da elite liberal norte-americana com Trump tem limite, isso está longe de significar uma mudança estrutural na forma como o Estado norte-americano trata suas minorias em direitos. Vidas negras continuarão não importando e sendo alvo preferencial da violência policial, da mesma forma que trabalhadores migrantes ainda serão tratados como carne de segunda, com ou sem a ampliação do muro com o México.

Nossa sociedade é mais violenta que a norte-americana sob qualquer ponto de vista e, aqui, vidas negras importam menos do que lá – dos quase 60 mil homicídios já citados, em 2015, as vítimas preferencias foram jovens negros e pobres. Mas os discursos que defendem racismo, machismo e homofobia e autorizam a violência contra grupos mais vulneráveis seguem ganhando forma na rede e nas ruas no Brasil. Enquanto não tivermos mobilizações fortes e contundentes contra isso, do Estado, do setor privado e da sociedade em geral, esse tumor tende a crescer.

O problema é que uma parte de nossa elite também é menos cosmopolita, menos preparada e mais tosca que a norte-americana. Lá existe uma direita liberal consistente e democrática, coisa que faz falta no debate público daqui. E considerando que há grandes empresários que não têm vergonha alguma em dizer que, por exemplo, trabalho escravo não existe (apesar de pertencerem ao agronegócio e ao setor de vestuário, com grande ocorrência de libertações de pessoas) e que defendem valores que fazem corar o Tea Party, movimento ultraconservador ligado ao partido republicano, talvez a eleição de uma figura apolítica seja tudo o que o Brasil precisa para se tornar uma grande Bangladesh ou Somália da desregulamentação do mercado de trabalho e do fim do "peso" dos programas sociais.

Ao mesmo tempo, uma parte progressista homem e branca da sociedade permanece reclamando porque grupos historicamente vilipendiados resolveram deixar claro que estão assumindo um novo patamar na luta contra o racismo, o machismo, a homofobia, a humilhação. Essa ala progressista fica de mimimi ao invés de aceitar a autocrítica (que incomoda, eu sei, por isso é necessária), ouvir outros grupos sobre as formas de apoiá-los e ir às ruas ao seu lado, ao invés de subordiná-los à estrutura partidária, sindical ou de movimentos tradicionais ou à sua própria narrativa.

Talvez estejamos apenas esperando um país de terra arrasada para que os poucos que sobrarem superem as diferenças e marchem juntos sobre seus escombros contra o racismo, o machismo, a homofobia, a desigualdade social.

Afinal de contas, por aqui, é mais fácil destruir do que erguer algo juntos.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.