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Leonardo Sakamoto

Brasileiro sabe que país está intolerante. Mas segue correndo para o abismo

Leonardo Sakamoto

23/04/2018 13h35

Manifestante antipetista (de camiseta cinza e com cofrinho à mostra) chicoteia simpatizante de Lula em Santa Maria (RS). Foto: Marlene Bergamo/Folhapress

É fácil culpar apenas  notícias falsas em redes sociais pelo clima de beligerância em que vivemos. Seria uma saída simples, como se a guerra fratricida fosse decorrente apenas de escroques produtores de falso conteúdo caça-clique,  viralizado com o objetivo de fazer dinheiro fácil e/ou manipular a opinião pública.

Mas a reprodução de notícias falsas não teria a voracidade com a qual ocorre se não estivéssemos em um momento ultrapolarizado, quando qualquer informação duvidosa que possa representar um dano ao adversário ou "comprovar" como ele é "hipócrita" e "ignorante" é compartilhada – mesmo que não se sustente a um exame racional.

Pois o objetivo não é informar e construir significados conjuntos a partir de pontes criadas pelo diálogo. Mas, igual ao que ocorre em um tabuleiro de War, destruir o exército inimigo.

Toda e qualquer pessoa que contribuiu para o clima de polarização extrema tem responsabilidade pelos números divulgados, nesta segunda (23), de uma pesquisa da Ipsos Mori feita em 27 países. Questionados sobre a tolerância com pessoas de diferentes origens, culturas e pontos de vista, 45% dos brasileiros diz estar menos tolerante e 29% mais tolerante do que há dez anos. A média global foi de 39% e 30%, respectivamente.

Para 62% dos brasileiros, o país está mais polarizado. Por aqui, a política é vista como principal fato de desentendimento e separação. Na média dos países consultados, a percepção da polarização é de 58%, o que mostra que vamos mal, mas o mundo também não vai lá muito bem.

Claro que a forma como foi estruturada a publicidade em plataformas como o Google e o Facebook ajudou a piorar a situação ao possibilitar a monetização de atividades de sites e páginas, não raro anônimos, que lucram com a degradação das relações sociais. Por exemplo, anos atrás uma empresa pagou um anúncio ao Google para me difamar. Após longo processo, a Justiça – em segunda instância – obrigou a plataforma a informar quem havia bancado a propaganda – a JBS. A empresa negou. O saldo final foi minha reputação manchada, o Google lucrando com isso e a página difamatória, bombada pelo anúncio, ainda indexada pela plataforma.

Da mesma forma, o analfabetismo digital e a falta da cultura para os direitos humanos ajudam a fazer da sociedade massa de manobra do interesse econômico e político desses produtores e divulgadores de notícias na rede e de seus contratantes. Zumbis que, alimentados por likes ou pelo prazer de ser o primeiro a entregar determinada informação bombástica (mesmo que falsa) a seu grupo, abrem mão de sua capacidade de ler, refletir, desconfiar e terceirizam seu intelecto.

É tentador apontar o fenômeno das notícias falsas em ambiente digital como os únicos causadores do belicismo no relacionamento pessoal. Talvez seja por isso que muitas instituições dizem que o caos no país surge quando as redes sociais começaram a distribuir conteúdo caça-clique, exagerado e sensacionalista, voltado à desinformação. A produção e distribuição de notícias falsas é uma tragédia, mas o conteúdo voltado à desinformação e manipulação não é o principal responsável pela clima de guerra deflagrada.

O processo de ultrapolarização, que se aprofundou após o segundo turno das eleições de 2014, tem como "sócios" partidos, líderes políticos, sociais e empresariais, parte da imprensa, grandes empresas. Enquanto essas pessoas e instituições não resolverem sentar para dialogar e buscar uma saída conjunta para distensionar relações, vamos continuar vivendo uma espiral de violência no debate público, online e offline.

Um ambiente perfeito para a operação de milícias digitais – algumas delas, aliás, que já foram chamadas, erroneamente, de "novos movimentos sociais", mas vivem da promoção do ódio ao outro.

Por fim, é interessante como se dá a formação de matilhas pela identidade reativa a um outro grupo ao invés da percepção das características do seu próprio grupo em ambiente extremamente polarizados. É assim com o antipetismo, que se une pelos erros do outro lado. Ou seja, muita gente se une pelo ódio a alguém e não pela solidariedade a alguma causa. O problema é que a união pela negação é incapaz de criar um projeto próprio de país, mas apenas algo com sinal invertido.

A solução para isso passa pela busca do diálogo de forma saudável, a começar por nossas lideranças políticas. Mas não só.

Sabemos que temos um déficit de formação para a cultura política do debate e para a convivência com a diferença e que, infelizmente, não somos educados, desde cedo, para saber ouvir, falar, respeitar e, a partir daí, construir consensos ou saber lidar com o dissenso. Não somos educados para a tolerância e a noção de limites. Precisamos difundir a ideia de que as violências física, psicológica, verbal não são instrumentos de resolução de conflitos.

Pelo contrário, quem tenta apenas "lacrar" num diálogo com o adversário não percebe que, do ponto de vista social, perdeu o debate de antemão.

Há uma minoria de violentos. Na política, no futebol, na religião. E que, portanto, deveria ser tratada ou contida por seus amigos e companheiros. O problema é que o resto da sociedade, por cumplicidade ou indiferença, segue no papel de refém e espectadora de um show de horrores que parece não ter fim.

Ao final, se nada fizermos para qualificar o debate público e dar um basta no inaceitável, daqui a dez anos teremos uma nova pesquisa mostrando números que comprovarão a nossa falência como sociedade.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.