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Leonardo Sakamoto

Brasil não tem pressa para tirar idosos pobres da prisão do analfabetismo

Leonardo Sakamoto

18/05/2018 11h13

Valterci Santos/ Gazeta do Povo

A quantidade de analfabetos continua caindo no Brasil, mas o ritmo segue mais lento do que o necessário para garantir um mínimo de dignidade a uma parcela significativa do povo – principalmente idosos e negros.

Passamos de uma massa de pessoas iletradas com 15 anos ou mais de 7,2% da população, em 2016, para 7%, em 2017. Os números são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, divulgada, nesta sexta (18), pelo IBGE. Isso representa 11,5 milhões de pessoas que não sabem ler e escrever. Considerando apenas a faixa de 60 anos ou mais de idade, o número é três vezes maior 19,3%.

Entre a população negra, a taxa é de 9,3% – mais que o dobro que a incidência nos brancos (4%). Sobre isso, não há muito o que dizer. É o racismo estrutural brasileiro em números. Um país que aboliu formalmente a escravidão, mas não garantiu dignidade para que a massa de homens e mulheres libertos pudesse começar vida nova, hoje vê os herdeiros dela sofrerem as consequências desse erro histórico. Essa demora em reduzir as diferenças também é fruto de um racismo institucional, no qual o Estado privilegia e protege os brancos em relação ao restante da população.

Os iletrados são os pobres. Mas há mais negros entre os pobres do que sua proporção entre a população total. E isso não é coincidência.

Não é à toa que, no Nordeste, região com baixos índices de desenvolvimento humano, o índice é maior, atingindo 14,5%. No último lugar, as Alagoas, de Fernando Collor e Renan Calheiros, com quase um quinto da sua população (18,2%) sem saber ler ou escrever. Quando considerado apenas as pessoas com 60 anos ou mais na região, a taxa estoura para mais de um terço (38,6%).

Essa quantidade de idosos chama a atenção. Se o país não tomar cuidado, o ritmo de queda do analfabetismo ficará camuflado pela própria renovação geracional: os mais velhos, iletrados, morrendo e dando lugar nas estatísticas aos mais novos, que se beneficiaram da oportunidade que seus pais não tiveram no acesso a programa de transferência de renda ligados à educação básica.

Ou seja, ao invés de aumentar o esforço em programas de alfabetização de jovens e adultos que alcancem essa faixa etária, estaremos solucionando o "problema" ao deixá-lo morrer com o tempo, junto à população que sofre com ele.

Enquanto avançamos na inserção digital, com a popularização do acesso à internet através dos smartphones, parte da população não faz ideia de onde fica essa tal de internet ou a que horas ela deve passar no ponto da lotação, pois não é habilitado para ler e escrever. A velocidade de expansão dos que navegam na rede irá colidir, em algum momento, com a necessidade de alfabetizar digitalmente um analfabeto funcional – uma pessoa com 15 anos ou mais, com menos de quatro anos de estudo, com grande dificuldade de se comunicar pela forma escrita.

Considerando que, dentro em pouco, grande parte da vida das pessoas irá passar necessariamente pela rede (e muitas instituições, de bancos a empresas de serviços públicos, a fim de poupar dinheiro, já fazem questão de jogar tudo para a internet, como se todo mundo já estivesse lá) isso significa que o abismo entre incluídos e excluídos será maior do que hoje. Um problema não resolvido encontrará outro problema a resolver.

Estamos em uma sociedade na qual os que viveram mais tempo não são vistos como patrimônio de conhecimento, mas sim como estorvo produtivo, por não poderem fornecer ao capital a mesma energia que garantiam antes, quando eram moços. O interessante é que à medida em que o tempo avança e a pirâmide demográfica brasileira vai mudando, com a redução no número de jovens na base (crianças de até 5 anos – 1991: 11,5%; 2000: 9,8%; 2010: 7,6%)  e o aumento no número de idosos no topo, vamos percebendo a armadilha que estamos construindo para o nosso próprio futuro. E não estou falando da questão previdenciária, mas sim da ausência de políticas públicas que garantam o mínimo de respeito e dignidade aos idosos. Ou seja, a capacidade de se expressar.

E não basta possibilitar o acesso a cursos. Uma camada de idosos pobres deve ser incentivada a participar ativamente das decisões do cotidiano. O país precisa defender que os mais velhos sejam parte ativa da vida em sociedade, reservando a eles papeis importantes. Dessa forma, o esforço para a alfabetização também será valorizado.

A gente até pode conseguir, lá na frente ganhar esse jogo de xadrez que é o letramento de um povo. O problema é a quantidade de peões que perderemos no caminho em decorrência de nossa falta de pressa e indiferença.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.