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Leonardo Sakamoto

No Brasil, mobilidade social é um conto de fadas para acalmar os pobres

Leonardo Sakamoto

15/06/2018 17h37

Crianças perdem as digitais no trabalho de quabra da castanha de caju no Rio Grande do Norte. Foto: Daniel Santini/Repórter Brasil

Para que os descendentes de um casal de brasileiros que está entre o 10% mais pobre atinjam o rendimento médio do país seriam necessárias nove gerações. Esse dado pertence a um estudo sobre mobilidade social organizado pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), divulgado nesta sexta (15). Entre 30 países analisados, o Brasil só não é pior do que a Colômbia nesse quesito.

Nesse contexto, se um casal tem duas vezes mais renda que outro casal, os filhos do mais rico vão ganhar 70% mais que os filhos do mais pobre. Em países como a Finlândia, essa proporção é de 20%. Ou seja, a situação não apenas é injusta como também persistente.

Todos sabemos que a desigualdade social, de justiça e de oportunidades é hereditária. Mas sempre assusta quando vem vestida assim, na forma de números.

O 10% da população com os maiores rendimentos detinha 43,3% do total de rendimentos do país, enquanto a parcela do 10% com os menores rendimentos representava 0,7% da massa em 2017, de acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua). Enquanto isso, o 1% com o rendimento mais elevado (média mensal de R$ 27.213) recebia 36,1 vezes o rendimento da metade da população com os rendimentos menores (média mensal de R$ 754).

Ha quem veja o Brasil como um transatlântico de passageiros, com divisões de diferentes classes, com os mais ricos tendo mais conforto em suas cabines. Os mais endinheirados chegaram na primeira classe das mais diferentes formas. Alguns por seu próprio suor, outros herdando riquezas e oportunidades e há os que superexploraram o trabalho alheio. O ideal seria que as cabines de terceira classe contassem, ao menos, com a garantia de um mínimo de dignidade e as de primeira classe pagassem passagem proporcional à sua renda. E que, ao contrário do Titanic, tivéssemos botes salva-vidas para todos e não apenas aos mais ricos quando o barco fizesse água, ou seja, em momentos de crise.

Mas ao invés de oferecer medidas que amorteçam o sofrimento dos mais pobres, que são os que mais sentem os efeitos de uma depressão econômica, esse navio de cruzeiro tupiniquim tenta preservar os mais ricos e as associações empresariais que trocam governos e elegem representantes. Na prática, seguimos sendo um navio que carrega escravos, com parte dos passageiros chicoteando a outra parte para que sigam remando.

Uma Reforma Tributária que trouxesse de volta a taxação em 15% sobre dividendos recebidos de empresas, reajustasse a tabela do Imposto de Renda (isentando a maior parte da classe média e criando alíquotas de 30 a 40% para os que ganham muito) e reduzisse os impostos sobre o consumo (com exceção dos produtos de luxo, claro) seria um bom pontapé inicial nesse sentido.

Mas que também aumentasse a taxação sobre heranças, que hoje tem teto de ridículos 8%. Enquanto isso, um país notoriamente "comunista", como os Estados Unidos, pode taxar grandes heranças em 40%.

É justo que todos que suaram a camisa e conseguiram guardar algum queiram deixar uma vida mais confortável para seus filhos e netos. Contudo, a partir de uma determinada quantidade de riqueza, o que seria apenas garantir conforto transforma-se em transmissão hereditária da desigualdade social e de suas consequências.

Quem tem muito deveria, ao passar desta para a melhor, entregar parte do possuía para proporcionar oportunidades a quem tem menos. Atenção: não estou dizendo para entregar dinheiro vivo a quem não tem nada, caros leitores que não gostam de ler. Mas usar os recursos para a execução de políticas públicas de educação, cultura, lazer, moradia, alimentação, enfim, direitos básicos. Afinal de contas, como é possível que, por lei, todos nasçam iguais em direitos se alguns vêm ao mundo sistematicamente "mais iguais" que outros?

Dessa forma, dentro de algumas poucas gerações, conseguiríamos suavizar esse degrau brutal entre as diferentes castas que convivem por aqui. A beleza de um imposto sobre heranças que morda progressivamente na proporção do tamanho da fortuna não reside apenas nos recursos que ele é capaz de arrecadar, mas no simbolismo de um Estado que assume o papel de corrigir distorções históricas e de tratar desiguais de forma desigual.

Combater a desigualdade não significa fazer todo mundo vestir um mesmo tipo de roupa, comer a mesma comida, receber o mesmo salário, viver no mesmo tipo de casa. Mas garantir oportunidades iguais, pelo menos no início da caminhada de cada um, e depois atuar para que todos tenham seus direitos efetivados.

A desigualdade dificulta que as pessoas vejam a si mesmas e as outras pessoas como iguais e merecedoras da mesma consideração. Leva à percepção de que o poder público existe para servir aos mais abonados e controlar os mais pobres. Ou seja, para usar a polícia e a política a fim de proteger os privilégios do primeiro grupo, usando violência contra o segundo, se necessário for. Com o tempo, a desigualdade leva à descrença nas instituições. O que ajuda a explicar o momento em que vivemos hoje.

Enquanto isso, gostamos de contar um belo conto de fadas, que ensina que todos podem chegar lá. Depende apenas de cada um. Basta "estudar por conta própria", "trabalhar duro" e "confiar em Deus". Ou seja, quem não chega é burro, vagabundo e não tem fé?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.