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Leonardo Sakamoto

Vídeos mostram que o "país do futebol" também é o da violência sexual

Leonardo Sakamoto

20/06/2018 14h49

Não sei se podemos dizer que a seleção brasileira de futebol masculino representa o Brasil na Rússia. Mas certamente os brasileiros que foram pegos assediando sexualmente mulheres de outros países em criminosos vídeos machistas e violentos que viralizaram na rede representam um grande naco da população daqui.

Claro que há países tão ou mais machistas e violentos entre os que disputam a Copa do Mundo, a exemplo daqueles que protagonizaram o jogo de estreia, a anfitriã Rússia e a Arábia Saudita. Mas os vídeos mostraram orgulhosamente ao mundo que parte de nós, homens brasileiros, não é apenas tosca, mas parece ter vontade de compartilhar essa informação com o universo. Ou talvez achem que estão em alguma competição, via redes sociais, para saber quem é mais burro.

Pode ser que não ganhemos a Copa, mas dada a repercussão dos vídeos, o Troféu de Imbecilidade já recebemos.

E não se engane. Não é só meia dúzia de celerados. Ataques como esse traduzem o que parte da nossa sociedade machista pensa. Que uma mulher que conversa de forma simpática em uma festa está à disposição, que uma mulher que se veste da forma como queira está à disposição, que um grupo de mulheres sem "seus homens", andando por aí, está à disposição.

A última pesquisa Datafolha disponível sobre o tema aponta que 42% das mulheres relata já ter sofrido assédio sexual no Brasil. Os números indicam que 29% delas foi assediada na rua (valor que vai a 45% se considerado apenas as mulheres entre 16 e 24 anos), 22% no transporte público, 15% no trabalho, 10% na escola ou faculdade e 6% em casa – sendo que houve entrevistadas que relataram mais de um tipo de assédio.

Outra pesquisa Datafolha, essa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e divulgada em setembro de 2016, mostrou que, dos entrevistados, 30% achavam que a afirmação "a mulher que usa roupas provocativas não pode reclamar se for estuprada" está correta. O percentual é o mesmo entre homens e mulheres e aumenta entre idosos e pessoas com menor grau de escolaridade. Ao mesmo tempo, 37% dos entrevistados concordavam que "mulheres que se dão ao respeito não são estupradas". Neste caso, a porcentagem era maior entre homens (42%) do que entre mulheres (32%).

Para muitos desses homens envolvidos nessas situações deploráveis, provavelmente não se enquadram na categoria de "objetos sexuais" apenas suas mães e avós, que dormem o sono das santas católicas, enquanto quem é "da vida" povoa as ruas, as festas, os jogos de futebol. Porque "mulher de bem" não aceitaria nunca colocar um vestido acima do joelho e deixar as costas de fora, não bebe, fuma ou tem vícios detestáveis, não ama apenas por uma noite e não ri em público, escancarando os dentes a quem quer que seja. "Mulher de bem" permanece em casa para servir o "homem de bem" e estar à sua disposição como empregada, psicóloga, enfermeira, cozinheira ou objeto sexual, a qualquer hora do dia e da noite. Por que? Porque, na sua cabeça, elas pertencem a eles. Porque assim sempre foi, é assim que se ensinou por nós, homens, e foi aprendido. É a tradição, oras! E o discurso da tradição, muitas vezes construído de cima para baixo para manter alguém subjugado a outro não pode ser questionado.

Nesse sentido, aqui no Brasil, as mulheres que ousam sair desse padrão, podem ser vítimas de alguns "corretivos sociais". Reclamamos de estúpidos muçulmanos que, do alto de uma interpretação bisonha do Corão, atacam mulheres que resolveram ser independentes, mas acabamos por fazer o mesmo aqui. Não é a contundência de um vidro de ácido lançado no rosto de quem deixou a burca ou o shador em casa. Mas pode corroer tão fundo quanto e deixar marcas que podemos não perceber.

Nós, homens, pensaríamos duas vezes antes de fazermos comentários machistas, preconceituosos e violentos se tivéssemos medo de sermos criticados, repreendidos e humilhados publicamente por outros homens em um almoço de família, no intervalo das aulas da faculdade, na mesa de bar. E, é claro, também nas conversas, publicações, curtidas e compartilhamentos nas redes sociais.

Mais do que isso, não veríamos como "brincadeira" esse comportamento criminoso contra mulheres se deixássemos de passar a mão nas cabeças de outros homens, relativizando um assédio ou um ato violento como se fosse "brincadeira" ou um "xaveco". Ou se o sistema policial e de Justiça do país não refletisse, ele próprio, o machismo corrente na sociedade e atuasse de forma mais firme.

Em uma sociedade historicamente estruturada em torno da violência de gênero, nossa responsabilidade como homens não é apenas evitar que nós mesmos sejamos vetores dessa violência. Não basta cada um fazer sua parte para que o mundo se torne um lugar melhor. Se você fica em silêncio diante de situações de violência de gênero, sinto lhe informar que tem optado pela saída fácil da delinquência social.

Sim, ao ver um colega relinchando aberrações inconcebíveis na mesa do bar e não questioná-lo por isso, dando uma risadinha de conta de boca; ao ouvir aquele tio misógino defender que "mulher que se preze não usa saia curta" e ficar em silêncio; ao assistir àquele "humorista" fazer apologia ao estupro e não mudar de canal ou enviar mensagem protestando às autoridades; ou ao se deparar com um amigo compartilhando histórias de violência sexual e sua única reação foi um beicinho de desaprovação, você está sendo cúmplice de tudo isso.

Como já disse aqui, nós, homens, temos a responsabilidade de educarmos uns aos outros, desconstruindo nossa formação machista, explicando o que está errado, impondo limites ao comportamento dos outros quando esses foram violentos, denunciando se necessário for. Não é censura, pelo contrário. Esses são atos para ajudar a garantir que as mulheres possam desfrutar da mesmo liberdade que nós temos – liberdade que nossos atos e palavras sistematicamente negam a elas.

Por fim, as desculpas dadas pelos envolvidos – que parecem ter surgido muito mais pelo medo da repercussão e das consequências do que por um arrependimento genuíno aliado a um desejo de mudança – mostram que estamos distantes do fair play.

Nós, homens, estamos ainda disputando as eliminatórias do respeito à dignidade humana – que é o campeonato que realmente importa. Mas, infelizmente, nunca conseguimos ser classificados para passar de fase. Permanecemos um bando de desqualificados.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.