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Leonardo Sakamoto

Chacina nos EUA lembra que "inimigo" também é homem branco e mora ao lado

Leonardo Sakamoto

29/06/2018 03h50

Agente do FBI respondendo ao tiroteio. Foto: Saul Loeb/AFP/Getty

O jornal Capital Gazette, em Annapolis, Estado de Maryland, nos Estados Unidos, foi alvo de um massacre, na tarde desta quinta (28). Um homem branco abriu fogo contra a redação – matando quatro jornalistas e uma pessoa que trabalhava no setor administrativo. Policiais e repórteres do jornal apontam para Jarrod Ramos, 38 anos, que processou o jornal por acreditar ter sido difamado.

De 97 ocorrências de tiroteio em massa nos Estados Unidos, entre 1982 e fevereiro de 2018, 56 foram provocados por pessoas brancas, 16 por negras, sete por latinos, sete por asiáticos, tres por nativos americanos, cinco por outros e três por desconhecidos. Dos 97, ao todo 94 foram cometidos por homens, 2 por mulheres e um por homens e mulheres. Em outras palavras, homens brancos são os principais perpetradores de massacres nos EUA. Os dados foram organizados pelo site Statista, que serve de referência para a mídia norte-americana.

Os norte-americanos possuem cerca de 265 milhões de armas de fogo, o que representa mais de uma arma para cada adulto. De acordo com o jornal The Guardian, 133 milhões dessas armas estão concentradas nas mãos de apenas 3% dos adultos.

O mais novo tiroteio, que deixou colegas mortos em Annapolis, e os números acima contrastam com o aprofundamento da política xenófoba contra migrantes pobres nos Estados Unidos – o que incluiu a separação de crianças e seus pais. O presidente Donald Trump havia afirmado, tempos atrás, em sua conta no Twitter, que "nós devemos manter o 'mal' fora de nosso país!". Ele se referia a uma decisão do Tribunal Federal de Seattle, que havia suspendido temporariamente o seu decreto impedindo a entrada de pessoas de países de maioria islâmica no ano passado.

Contrastam porque o "mal" está mais perto do que ele imagina, na forma de cidadãos brancos nascidos nos Estados Unidos. Mas o que fazer quando o "mal" somos nós mesmos?

Simples, encontrar um inimigo externo e insistentemente transferir o problema a ele até que nos esqueçamos de sua origem e fique só o preconceito. Famílias de latino-americanos tornam-se antros de ladrões e estupradores, todos os muçulmanos são considerados terroristas e, com a mais nova guerra comercial estabelecida pelo governo dos EUA, chineses são vistos como ladrões de postos de trabalho.

O apoio ao controle da venda de armas nos EUA cresce à medida em que aumenta o número de tragédias. Defende-se verificações de antecedentes para poder adquirir pistolas, proibição de comercialização de fuzis automáticos e cartuchos de munição de grande capacidade. Apesar do lobby forte da poderosa Associação Nacional do Rifle, mais da metade da população já concorda com impor limitações à venda.

Enquanto isso, há candidato à Presidência da República que defendem o fim do Estatuto do Desarmamento, aqui no Brasil, o que facilitaria a compra e o porte de armas. Por qualquer um.

O que deve ser inveja das tragédias que acontecem nos Estados Unidos – como se nós não tivessemos massacres o bastante para perder a conta.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.