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Leonardo Sakamoto

Candelária, 25: Antes, ao menos, o Brasil fingia que se chocava com chacina

Leonardo Sakamoto

23/07/2018 23h32

Crianças são assassinados por PMs perto da Igreja da Candelária. Foto: O Globo

No dia em que a Chacina da Candelária completou 25 anos, encontramos seres vociferando, nas redes sociais, que as crianças "morreram porque mereceram". Ou reclamando das reportagens que relembraram a data por "chorar a morte de vagabundos". E, claro, enaltecendo os policiais envolvidos, lembrando que "mataram foi pouco".

Chacinas, urbanas e rurais, como aquela, são um servicinho sujo que parte da sociedade deseja em seus sonhos mais íntimos. Uma "limpeza social" das "classes perigosas" e dos "entraves para o progresso". Não é que a nossa sociedade não consegue apontar e condenar os culpados por todas elas como deveria, o que ajudaria a frear essa loucura. Ela simplesmente não faz questão. Porque, como já disse aqui, não suportaria um espelho no banco dos réus.

Mais de 50 crianças e adolescentes em situação de rua costumavam dormir na praça da Igreja da Candelária, região central do Rio de Janeiro. Na madrugada de 23 de julho de 1993, policiais militares, em horário de folga, atiraram contra nove deles, com idades entre 11 e 20 anos. Dos atingidos, apenas um sobreviveu. Sete homens chegaram a ser acusados pela chacina. Três foram absolvidos e quatro, todos policiais, foram condenados. Foram para a cadeia até que um foi indultado e outro teve a pena extinta. O terceiro está foragido. As informações são de reportagem da Repórter Brasil.

Depois disso, o Estado não teve competência para garantir uma vida melhor ao restante dos jovens que dormiam sob as luzes da Candelária. Muitos sobreviventes morreram assassinados, vítimas da Aids, outros serviram ao tráfico, foram empurrados à prostituição e há os que desapareceram. Sandro, o sequestrador morto pela polícia no caso do ônibus 174, que inspirou um filme, escapara daquele dia na Candelária.

A diferença daquela época para agora é que nos acostumamos com chacinas. E a indignação tornou-se mais rara.

Por exemplo, uma ação policial, em maio de 2017, assassinou dez pessoas no município de Pau d'Arco (PA). Segundo o governo do Estado, os policiais estariam cumprindo mandados de prisão de acusados de assassinar um segurança de uma fazenda, mas a Comissão Pastoral da Terra afirma que foi uma execução em uma ação de despejo. Apesar do tamanho e do fato dos envolvidos terem sido denunciados, a repercussão não chegou nem perto do massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido 21 anos antes, não muito longe dali.

Carandiru (1992), Vigário Geral (1993), Ianomâmis (1993), Candelária (1993), Corumbiara (1995), Eldorado dos Carajás (1996). Depois dessas ignomínias pensávamos que não cometeríamos os mesmos tipos de "erros", que aquilo era resquício dos tempos violentos da ditadura. Mas a história não foi bem assim. Os famosos massacres da década de 90 foram apenas um ensaio da banalização da morte dos mais pobres que viria a seguir.

Em maio de 2006, por exemplo, cerca de 500 pessoas, a maioria de jovens, negros, pobres e moradores de periferia, foram mortas no Estado de São Paulo. Por trás dos crimes, organizações sociais apontam para policiais e grupos de extermínio como uma retaliação geral a ataques do PCC, que vitimaram policiais.

O país continuou a assistir a centenas de assassinatos de mais jovens negros periféricos, trabalhadores rurais indígenas, quilombolas e ribeirinhos em conflitos agrários, massacres de sem-teto, de homossexuais e transexuais, de população em situação de rua.

Jogamos na vala comum "culpados" – que não tiveram direito a um julgamento justo e receberam pena de morte – e "inocentes" – que mereceram, porque "se levaram bala, boa coisa não tinham feito". Seja pelas mãos do Estado ou de criminosos.

Como já disse aqui, sem demérito para outras pautas sociais e políticas, isso seria razão mais do que suficiente para ocuparmos as ruas das grandes cidades em protesto ou batermos panela até que não sobrasse nem o cabo.

Mas, ao invés de pedir ações estruturais que melhorem a qualidade de vida, garantam justiça social, desmilitarizem as forças policiais, entre outras medidas preventivas que podem garantir um país mais seguro, apoiamos saídas fáceis e bizarras, como colocar crianças nas cadeias e liberar armas.

Pegue diferentes matérias sobre chacinas. Verá que é só trocar o nome dos mortos, do município (às vezes, nem isso) e onde foi a emboscada para serem a mesma matéria. As mesmas desculpas do governo, os mesmos planos de ação parecidos, as mesmas reclamações da sociedade civil, os mesmos grupos sendo criados para debater e encontrar soluções. Pode-se prender um ou dois. Mas as condições que deram origem a elas estão aí produzindo vítimas, como em um pesadelo.

Do qual não conseguimos acordar. Nem se quiséssemos.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.