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Leonardo Sakamoto

Assessora fantasma: Bolsonaro entende a separação entre público e privado?

Leonardo Sakamoto

13/08/2018 20h07

Jair Bolsonaro, Levy Fidelix e Antonio Hamilton Mourão. Foto: Renato S. Cerqueira/Futura Press/Estadão Conteúdo

Candidato à Presidência da República, Jair Bolsonaro repete à exaustão que apoia a Lava Jato e não foi envolvido em nenhum grande escândalo de corrupção. O que faz sentido uma vez que ele não participou diretamente de nenhum dos governos do PT, PSDB e MDB. Apesar, é claro, de ter pertencido, por mais de uma década, ao PP, partido que conseguiu a proeza de estar envolvido em tudo o que é escândalo.

Talvez acostumado com Compras de Reeleição, Mensalões, Trensalões, Petrolões, os brasileiros tenham se esquecido que o uso irregular de recursos públicos por parte de representantes dos Três Poderes não se resume a grandes negociadas. Bolsonaro não conseguiu explicar de maneira satisfatória e republicana como ele mantinha uma assessora, desde 2003, com recursos da Câmara dos Deputados, na Vila Histórica de Mambucaba, Angra dos Reis (RJ), onde conta com uma casa de veraneio.

Ele afirma que era uma representante, filtrando os pedidos e demandas sobre problemas na região. O problema é que, ao invés de ocupar um escritório político, ela vende açaí em um pequeno comércio durante o expediente parlamentar. De acordo com moradores do bairro, a suposta assessora e o marido prestam serviços à casa do deputado federal.

A Folha de S. Paulo, que havia revelado o caso em janeiro, voltou ao local, nesta segunda (13), e comprou produtos dela no momento em que deveria estar trabalhando para o deputado. No debate na TV Bandeirantes, na quinta passada, ao responder a Guilherme Boulos, Bolsonaro afirmou que a assessora estaria de férias no começo do ano.

Questionada se deveria receber diretamente do deputado e não da Câmara, respondeu: "Mas aí é uma coisa que cabe a ele responder". O que concordamos plenamente, pois foi Bolsonaro quem colocou sua funcionária nessa situação embaraçosa.

De acordo com a Folha, após os repórteres irem embora, ela telefonou para a sucursal do jornal em Brasília e disse que pediria demissão. De acordo com o candidato à Presidência da República, ela entrou em contato com ele e solicitou o desligamento, sendo exonerada.

"Tem dois cachorros lá e pra não morrer de vez em quando ela dá água pros cachorros lá, só isso. O crime dela é esse aí, é dar água pro cachorro", declarou Bolsonaro após falar da exoneração. "Fico até chateado porque ela precisa, pessoa pobre. Está comigo há mais de dez anos", afirmou.

Com o imbrólio, o candidato apenas reforça a imagem de que, como muitos outros políticos tradicionais, gasta dinheiro público conforme lhe convém. Porque, ao que tudo indica, dar água para seus cachorros não é interesse público, mas interesse dele e dos cachorros.

Qual era a descrição exata do trabalho da suposta assessora e sua agenda diária? Há uma lista de demandas que ela recolheu ao longo do tempo para o seu gabinete? Como eram suas funções junto à base eleitoral do parlamentar? Como funcionava a comunicação com o gabinete? Qual eram os resultados dessa assessoria? Houve projetos e ações que nasceram baseadas nela?

Ela também não é a única pessoa pobre que "precisa" de um emprego. Há algumas dezenas de milhões que se encontram na mesma situação. Infelizmente, nem todas caíram na benção do candidato.

Diante da denúncia, seguidores de Bolsonaro vociferam para a imprensa nas redes sociais quando deveriam ter cobrado de seu representante uma explicação.

O silêncio, é claro, não é monopólio de seus exaltados militantes. Para certos petistas e tucanos, não houve nenhuma maracutaia envolvendo políticos do PT e do PSDB e estatais, como a Petrobras, durante os anos em que governaram o Brasil, sendo tudo invenção da imprensa e dos adversários.

E não só eles. Após a polêmica do recebimento de auxílio-moradia por juízes e políticos que possuem imóvel próprio no município em que residem, como o juiz federal Sérgio Moro, responsavel pela Lava Jato, muitos saíram em defesa daqueles que chamaram de "heróis da nação". Segundo seus fãs, o uso de recursos públicos não é nada em comparação com a "contribuição que dão ao país".

A remuneração base de todos esses profissionais já é suficiente para cobrir uma vida confortável. Bolsonaro, que também recebia auxílio-moradia tendo um apartamento próprio em Brasília, chegou até a reunir um conjunto de imóveis enquanto parlamentar. E Moro, como outros tantos magistrados, recebia um montante acima do teto do funcionalismo público, considerando os benefícios agregados ao seu salário. O que não é ilegal, mas questionável.

É inconcebível a justificativa usada por fãs de políticos e magistrados, de que eles não devem ser cobrados publicamente porque fazem o seu trabalho.

Quem afirma isso acaba, na prática, defendendo o oposto do que se espera de um funcionário público ou de um representante político.

Pois a partir do momento em que são considerados "especiais" e "acima de questionamentos", a democracia e a República vão para o saco.

Triste é que, ao final, para muita gente, tudo isso terá sido uma "grande 'fake news' como parte de uma conspiração globalista de membros da URSAL". E a única responsável terá sido a pobre da vendedora de açaí.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.