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Leonardo Sakamoto

Bolsonaro propõe trabalhadores de "segunda classe", com menos direitos

Leonardo Sakamoto

14/08/2018 17h04

Jair Bolsonaro, em seu programa de governo para o país, apresentado nesta terça (14), propôs a criação de uma categoria de trabalhadores com menos direitos que os demais.

"Criaremos uma nova carteira de trabalho verde e amarela, voluntária, para novos trabalhadores. Assim, todo jovem que ingresse no mercado de trabalho poderá escolher entre um vínculo empregatício baseado na carteira de trabalho tradicional (azul) – mantendo o ordenamento jurídico atual –, ou uma carteira de trabalho verde e amarela (onde o contrato individual prevalece sobre a CLT, mantendo todos os direitos constitucionais)", afirma.

O programa não detalha a proposta. Pelo que está indicado, Bolsonaro pretende ir além da Reforma Trabalhista proposta pelo governo Michel Temer e aprovada pelo Congresso Nacional no ano passado, liberando o empregador do cumprimento de toda e qualquer proteção prevista em outras leis, desde que não esteja na Constituição, bastando para isso a concordância do candidato a uma vaga.

Poucos discordam que a livre elaboração de um contrato, com direitos e deveres de ambas as partes postos na mesa de forma igual e equilibrada, é a situação ideal. O problema é que um contrato individual pode ser firmado tanto em benefício do trabalhador quanto em seu prejuízo – neste último caso, envolvendo principalmente indivíduos economicamente vulneráveis. E aí reside o problema.

Isso vai ao encontro do que ele afirmou em sabatina a empresários em julho: "O trabalhador vai ter que decidir se quer menos direitos e emprego, ou todos os direitos e desemprego".

A proposta, contudo, pode ser apenas uma jogada de marketing, criada para funcionar como um elemento de mobilização ideológica de sua campanha, capaz de atrair empresários incautos e atiçar a sua militância. Pois a discriminação gerada a partir dessa diferenciação individual pode até passar pelo Congresso Nacional, mas seria declarada inconstitucional no Supremo Tribunal Federal.

A Reforma Trabalhista permitiu que, desde novembro, a negociação entre patrões e empregados ficasse acima do que diz a CLT. Ela, porém, limita os temas em que isso pode acontecer e afirma que a decisão deve ser tomada de forma coletiva, através de sindicatos. Pois, no desespero, diante da dificuldade de conseguir um trabalho, um indivíduo pode ser pressionado, objetivamente ou pelas circunstâncias, a ceder e abrir mão de proteções conquistadas com muita negociação ao longo de décadas.

Isso significaria abrir uma porta para a revogação da Consolidação das Leis do Trabalho aos mais vulneráveis, ou seja, o grosso da população. Sem contar que essa revogação geraria uma enorme insegurança jurídica, criando outros problemas – parte dos direitos que estão na Constituição demanda leis específicas presentes na CLT para fazer sentido.

Para esses trabalhadores de "segunda classe", seriam garantidos os direitos previstos na Constituição Federal, como férias e 13o salário, mas ficariam de fora conquistas obtidas ao longo dos últimos 70 anos e registradas na CLT. Como aquelas que dizem respeito à proteção à saúde e à segurança, questões sobre o descanso e a jornada de trabalho, regras para demissão de empregados, por exemplo. Ou as partes que tratam de contratos específicos para cada categoria – motoristas, professores, entre outros.

Para muitas pessoas, a proposta de Bolsonaro significa o fim da tutela do Estado sobre os trabalhadores, dando a eles mais liberdade. Contudo, da forma como está posta, é mais o fim da fiscalização sobre alguns empregadores, permitindo que avancem sobre um terreno hoje proibido em nome da competitividade.

Fim da unicidade sindical

O programa de governo, por outro lado, propõe o fim da unicidade sindical, o que é uma medida que viria em boa hora. A mudança teria que ocorrer por proposta de emenda constitucional, mas é salutar que um governo envie sugestão sobre isso ao Congresso Nacional.

"Além disso, propomos a permissão legal para a escolha entre sindicatos, viabilizando uma saudável competição que, em última instância, beneficia o trabalhador. O sindicato precisa convencer o trabalhador a voluntariamente se filiar, através de bons serviços prestados à categoria. Somos contra o retorno do imposto sindical", afirma o programa.

Durante o insuficiente tempo de discussão da Reforma Trabalhista, a questão sindical ficou restrita ao superficial debate sobre o fim da obrigatoriedade de que empregados paguem um dia de trabalho ao ano para o sindicato que os representam. Sempre defendi neste espaço o fim dessa cobrança – mesma posição de diversos sindicatos sérios. O ideal, contudo, é que seja dado um período mais longo de transição para que os sindicatos mais fracos se reorganizarem.

O pacote de mudanças não poderia ter parado por aí e deveria ter incluído o fim da unicidade sindical. Não faz sentido que apenas um sindicato represente uma categoria por região sem que o trabalhador tenha o direito de escolher quem o represente, o que contribui para a manutenção de sindicatos de fachada montados para que alguns ganhem dinheiro e patrões se divirtam. Dessa forma, sindicatos podem concorrer entre si pelo privilégio de representar os trabalhadores, mostrando o seu diferencial. Isso reduziria o número de sindicatos e os fortaleceria.

Da mesma forma, negociações coletivas deveriam envolver os representantes de empregados e empregadores de todas as atividades de uma mesma cadeia de valor. E as conquistas obtidas pelos empregados diretamente contratados precisariam valer para os das empresas terceirizadas ou de seus fornecedores. Isso desestimularia a terceirização com o objetivo de ganhar competitividade baseado na superexploração de determinados grupos de trabalhadores. Tudo isso é um embrião de uma necessária Reforma Sindical, coisa que o país demora em fazer.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.