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Leonardo Sakamoto

Bolsonaro propõe revogar lei de combate à escravidão que ajudou a aprovar

Leonardo Sakamoto

24/08/2018 13h22

Fiscalização do Ministério do Trabalho resgata trabalhadores em situação análoga à de escravo no Pará. Foto: Leonardo Sakamoto

Jair Bolsonaro (PSL) propôs revogar a principal legislação aprovada, nos últimos anos, para o combate ao trabalho escravo contemporâneo no país – a emenda constitucional 81/2014, que prevê o confisco de propriedades flagradas com esse tipo de mão de obra e sua destinação à reforma agrária e à habitação popular.

O item consta do programa de governo do candidato à Presidência da República: "Retirar da Constituição qualquer relativização da propriedade privada, como exemplo nas restrições da EC/81". O item consta das propostas para "reduzir os homicídios, roubos, estupros e outros crimes".

A emenda 81/2014 não criou o confisco de propriedades sem indenização, apenas alterou o artigo 243 da Constituição Federal, que já tratava da expropriação de imóveis flagrados com cultivo de plantas psicotrópicas ilegais, acrescentando a questão dos trabalhadores escravizados. Ou seja, essa "relativização" foi prevista pela Assembleia Constituinte de 1988. O programa de Bolsonaro não cita se irá propor também a revogação da previsão de confisco para plantações de maconha.

O deputado federal, contudo, votou a favor dessa emenda que, agora, se coloca contrário, de acordo com o registro do primeiro turno de votação, ocorrido em 11 de agosto de 2004. Ela corria na Câmara sob a alcunha de PEC 438/2001.

Naquele dia, todos os partidos e bancadas recomendaram a aprovação da emenda e 326 deputados votaram a favor. Mesmo com a orientação, dez se posicionaram contra e oito se abstiveram.

A chamada PEC do Trabalho Escravo levaria oito anos para ser analisada e aprovada em segundo turno na Câmara, em 22 de maio de 2012. Foram 360 favoráveis, 29 contrários e 25 abstenções. Nessa data, o registro de votação não indica a presença do deputado no plenário.

A primeira vez em que uma proposta de confisco de propriedades flagradas com trabalho análogo ao de escravo foi apresentada no Congresso Nacional foi em 1995, mesmo ano em que o governo brasileiro reconheceu diante das Nações Unidas a persistência de formas contemporâneas de escravidão no país e da criação do sistema público de combate a esse crime.

Devido à comoção popular gerada pelo assassinato de três auditores fiscais e um motorista do Ministério do Trabalho e Emprego durante uma fiscalização rural de rotina em 28 de janeiro de 2004, no que ficou conhecido como a "Chacina de Unaí", no Noroeste de Minas Gerais, a proposta foi aprovada em primeiro turno.

Desde sua proposição, a PEC do Trabalho Escravo entrou e saiu diversas vezes da pauta. Dezenas de cruzes foram plantadas no gramado do Congresso e mais de mil pessoas abraçaram o prédio em março de 2008, para protestar contra a lentidão na aprovação da proposta. Dois anos depois, um abaixo-assinado com mais de 280 mil assinaturas foi entregue ao então presidente da Câmara e hoje presidente da República, Michel Temer.

A emenda veio a ser promulgação, em 2014, após dois turnos de votação no Senado Federal e 19 anos de trâmite. Até agora, contudo, ela ainda não foi regulamentada devido à tentativa de parte da bancada ruralista de usa-la para inserir uma mudança na definição legal do que são condições análogas às de escravo.  Com isso, a emenda constitucional foi aprovada, mas não é usada.

A regulamentação é importante porque vai estabelecer qual o devido processo legal para o perdimento das propriedades. Pelos debates realizados no Congresso, o mais provável é que comece após condenação judicial com trânsito em julgado e não afete quem alugava ou arrendava imóveis e não tinha conhecimento das atividades de seus inquilinos. Além disso, o texto da emenda foi alterado durante os debates na Câmara dos Deputados para incluir imóveis urbanos e também para que os trabalhadores flagrados como escravos ou produzindo psicotrópicos não tenham prioridade no acesso a essas terras, afastando o temor de ruralistas de que houvesse "flagrantes forjados" para forçar a expropriação.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

Ataques ao combate ao trabalho escravo

O Brasil foi um dos primeiros países a reconhecer, diante das Nações Unidas, a persistência de formas contemporâneas de escravidão. Foi o primeiro a criar uma política nacional efetiva de libertação de trabalhadores em 1995. O primeiro a lançar um plano integrado de combate ao crime em 2003 e a publicar, periodicamente, um cadastro com os infratores a partir do mesmo ano, a "lista suja". Criou o primeiro pacto empresarial multisetorial contra a escravidão em 2005. E implementou ações pioneiras de repressão e prevenção que se tornaram referência em todo o mundo. Foram mais de 52 mil libertados em fazendas, carvoarias, oficinas de costura, canteiros de obra, entre outros empreendimentos.

Mas vem enfrentando dificuldades para levar adiante a política. Por exemplo, a "lista suja" tem sofrido ataques enquanto a fiscalização do trabalho vê dificuldades operacionais causadas pela falta de recursos.

A situação chegou ao limite em 16 de outubro de 2017, quando Ministério do Trabalho publicou uma portaria alterando o conceito de trabalho escravo a ser utilizado em fiscalizações, resumindo-o a cárcere privado com vigilância armada. Houve forte repercussão negativa, dentro e fora do país. O Supremo Tribunal Federal bloqueou, de forma liminar, a portaria. Para analistas, essa mudança radical levada a cabo pelo governo foi considerada moeda de troca para agradar ruralistas e empresas da construção civil no momento em que Michel Temer negociava com o Congresso Nacional o arquivamento da segunda denúncia criminal da Procuradoria-Geral da República contra ele. Em dezembro, o próprio Ministério do Trabalho publicou nova portaria, revogando a anterior.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.