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Leonardo Sakamoto

Negar o atentado contra Bolsonaro é descolamento preocupante da realidade

Leonardo Sakamoto

07/09/2018 14h42

Foto: Raysa Leite/AFP

Enquanto Jair Bolsonaro estava sendo operado na Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora, após o lamentável atentado que sofreu em uma atividade de campanha no centro da cidade mineira, parte das redes sociais começava a trilhar um caminho sombrio.

De um lado, antibolsonaristas questionavam a veracidade da facada, apesar dos boletins médicos e de toda a cobertura midiática. De outro, bolsonaristas diziam as que cúpulas de partidos políticos orquestraram a facada, mesmo que nada apontasse para isso e que a hipótese mais provável até agora tenha sido a da ação de um lobo solitário.

Dada a ultrapolarização que nos assola, militantes de ambos os lados ignoraram até mesmo que todos os candidatos envolvidos na disputa presidencial repudiaram o ataque, externaram desejos de pronta recuperação ao candidato e pediram equilíbrio e tranquilidade à população.

Preferiram acreditar em notícias falsas que correram as redes sociais, como a de que Bolsonaro teria entrado andando e sorrindo no hospital (mesmo que as imagens fossem de um momento anterior) ou a de que não havia sangue na camisa para justificar uma fraude (como se ser viciado em séries médicas na TV garantisse diploma de medicina). Enquanto isso, na campanha do ex-capitão, houve líder partidário declarando "guerra", líder militar fazendo ameaças ao vento e líder religioso promovendo linchamento virtual de pessoas que não estão entre as acusadas.

Levantamento da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas, que analisou 1.702.949 retuítes, entre 18h30 da quinta (6) e 9h desta sexta (7), mostrou que 40,5% das interações no Twitter acusaram a facada de ser uma farsa e ironizaram as críticas da direita a uma suposta falta de empatia da esquerda. Essa informação é muito ruim para a qualidade de nossa democracia.

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Não importa que entrevistas com médicos tenham afirmado que a faca perfurou o abdômen, atingindo veias e os intestinos delgado e grosso, não importa que tiveram que fazer uma colostomia (quando desvia-se o intestino para fora do corpo, acoplando-se uma bolsa para recolher as fezes, enquanto o corpo se recupera). Nas redes sociais, o que importa é que "verdade" é tudo aquilo com o qual a pessoa acredita e "mentira" é tudo aquilo da qual discorda.

O cenário de um atentado contra a vida de um dos principais presidenciáveis é um terreno fértil para o surgimento de teorias conspiratórias, de um lado e de outro. Afinal, no calor dos acontecimentos, ainda não há informação suficiente para explicar o ocorrido à população. Porém, as pessoas estão on-line, querem respostas imediatas. Mesmo que essas respostas não resistam a uma lufada de fatos.

Diante dessa sensação de vazio deixada pela aparente falta de sentido de uma realidade política que transforma em estagiários os roteiristas de House of Cards e Game of Thrones, muitos buscam preencher a lacuna de explicação com qualquer informação que lhe faça sentido. Coletam dados e montam suas próprias teorias ou compram de terceiros, que as criaram por ignorância ou má fé.

Se há um exército que retuíta, compartilha e dá like sem checar a informação, é claro que também existe uma miríade que preenche o vácuo de informações fragmentadas com suas fantasias, desejos ou armações para dar sentido à sua existência ou com o objetivo de lucrar política e economicamente com isso.

Não que conspirações não existam, porque existem. Mas são importantes demais para que o impacto de sua descoberta seja enfraquecido pela sua banalização no cotidiano sem graça.

Um presidenciável ter transformado um ataque de uma bolinha de papel/bobina de fita em uma pedrada com direito a exames hospitalares, anos atrás, pode levar parte da população a aumentar seu ceticismo diante de outras situações. O preocupante, contudo, é ele não se dissipar à medida em que chegam informações para comprovar o ocorrido através de diversas fontes, da esquerda à direita, e na mídia.

Para muitos, é mais confortável acreditar que Bolsonaro fez um acordo com as Organizações Globo para forjar um ataque a si mesmo após uma reunião que ele teve com um dos irmãos Marinho, contratando um ator com uma faca de brinquedo e dezenas de figurantes, comprando o silêncio de médicos e de hospitais e envolvendo toda a grande imprensa na farsa para garantir que ele seja vitorioso do que entender que houve um ataque à faca.

Da mesma forma, é impossível para muitos de seus seguidores imaginar que isso possa ter sido feito por um desequilibrado, que absorveu o ódio político do país em que vive e foi lá praticar uma missão, que acredita ser divina. Para esses, quem não tratar tudo como uma conspiração nacional envolvendo o Foro de São Paulo é mentiroso ou mal informado.

Uma mentira repetidas mil vezes para os outros vira verdade e, para si mesmo, torna-se religião. Se a teoria conspiratória é bem amarrada, usando elementos simbólicos comuns ao universo do destinatário, que ele consegue consumir facilmente, e que faz algum sentido, por que não acreditar?

Ou seja, o autoengano, tal qual o ódio e a ignorância, é um lugar quentinho. Um refúgio diante da realidade fria e desoladora. O mundo sem teorias da conspiração seria mais duro. E teríamos que assumir muitas de nossas ignorâncias e responsabilidades sem jogar a culpa no desconhecido, no oculto, no sobrenatural, no estrangeiro, na orquestração que nos transforma em fantoches da vida.

Há pessoas que não percebem que há um mundo de gente defendendo algo totalmente oposto à sua timeline porque não consegue ver além da bolha. Isso, é claro, também é culpa do algoritmo das redes sociais, que garante que você veja coisas de pessoas com a qual interage mais, com a qual concorda mais. Dessa forma, fica mais tempo na rede, gerando conteúdo de graça e clicando em links patrocinados.

O susto por conta de alguns resultados nas eleições de 2014 (muitos achavam que Aécio ia levar, por exemplo) e de 2016 (outros tantos ficaram de queixo caído com a eleição de João Dória no primeiro turno) são provas disso.

Veículos de comunicação, desde aqueles de grande alcance até os alternativos e independentes têm se esforçado em trazer matérias que separam o que é fato do que é especulação, como ocorreu em outro momento propenso a teorias conspiratórias, que foi o caso da queda do avião de Teori Zavascki. Mas esses textos não chegam a quem deveria ou, lá chegando, são recebidos com desconfiança. Nem tanto pela perda de credibilidade da imprensa nesse momento de ultrapolarização, mas porque as pessoas estão sendo guiadas pela emoção e não pela razão.

A ideia de pós-verdade, quando a emoção ao transmitir um fato é mais importante para gerar credibilidade em torno dele do que provas de sua veracidade em si, nunca pareceu tão pertinente.

Por isso, nunca precisamos tanto da razão e do diálogo. Que ela venha, portanto, na forma de pessoas e instituições que constroem pontes para unir grupos que, neste momento, xingam-se mutuamente no escuro. E que, armadas até os dentes com seus preconceitos, vão acabar matando uns aos outros. Uma prova de que não nos acostumamos à barbarie seria, através desse diálogo, exigir dos candidatos o compromisso contra o discurso de ódio e a intolerância.

Em tempo: Não importa que Bolsonaro tenha dado, de forma sistemática e inconsequente, as piores declarações possíveis, falando de fuzilamento, elogiando torturador e tudo o que há de pior. É inaceitável ouvir coisas como "quem planta, colhe", frases que ele mesmo já cansou de falar, vindo de pessoas que, até ontem, pediam a efetivação dos direitos humanos. O que elas querem com isso? Mostrar que nem elas acreditavam nos valores que defendiam? Provar que são iguais a ele e que a diferença reside na oportunidade de dizer absurdos? Se for assim, parabéns, vocês estão conseguindo seu objetivo.

Post atualizado para inclusão de dados do FGV-DAPP.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.